sexta-feira, janeiro 30, 2004

Os cães e as cidades cruéis


Era para colocar um post sobre o aborto. Mas afinal fica um post muito mais singelo.

Tendo crescido no campo, uma das minhas angustias de criança era o percurso que tinha de fazer a pé entre casa e escola. Era inevitável percorrer locais em que cães soltos vinham ter comigo. Sendo bastante pequeno na altura, qualquer cão de média estatura me parecia enorme e ameaçador. Mas revelavam-se sempre inofensivos, aproximando-se para me cumprimentar e talvez ganhar algumas festas.

Nos meus primeiros contactos com a cidade, sem companhia, já estava prevenido sobre o comportamento das pessoas, todas desconhecidas umas das outras, com a ausência de cumprimentos. O que não esperava era uma acção dos cães idêntica. Já perdera o medo aos animais e agora tentava aproximar-me deles. Mas eles passavam por mim como se não me tivessem visto, frios e distantes.

O comportamento dos gatos também é semelhante, se bem que muitos gatos do campo também fujam por terem sido mal tratados. Mas nas cidades é raro encontrar um gato que não fuja e se esconda debaixo de um automóvel.

Se até os animais têm estes comportamentos nas cidades, como poderão os seus habitantes ser mentalmente saudáveis? Quando encontrar uma cidade em que os animais vierem ter comigo para lhe fazer festas, passará a ser a minha cidade de referência. Mas será difícil, agora que estão sujeitos à trela.




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segunda-feira, janeiro 26, 2004

A morte não foi em directo


Ontem à noite tinha pensado colocar aqui um post sobre um assunto “sério”. Mas, estando a ver o jogo V. Guimarães – Benfica em directo pela Sport TV, passou-me a vontade. A dado momento tive o ímpeto de escrever sobre os acontecimentos trágicos e a performance da comunicação social. Mas achei que não era de bom tom escrever um post a quente sobre assunto tão delicado.

Para os poucos que não sabem do que falo, vou resumir os acontecimentos, do meu ponto de vista. O jogo em Guimarães, como espectáculo, foi fraco. Choveu bastante e a cada minuto que passava a relva ia dando lugar à lama. Os jogadores esforçavam-se, mas era complicado fazer uma jogada completa. Como adepto benfiquista (e sócio há algumas semanas) via o jogo chegar ao fim, num empate que poria o clube fora da disputa de qualquer lugar relevante no campeonato. Foram efectuadas várias substituições, entre as quais a entrada de Feher a meio da segunda parte ou talvez ainda antes.

O Benfica acabou por marcar perto do final, quando a esperança era pouca. A alegria foi grande mas apenas alguns minutos depois tudo se desvaneceu face a algo muito mais importante. Mesmo perto do fim, já nos minutos de desconto, Feher, jogador do Benfica, tenta ganhar algum tempo atrapalhando um arremesso de campo do Vitória de Guimarães. Leva um cartão amarelo por isso, mas o seu sorriso para o árbitro mostra que tal não tinha importância até seria de esperar, coisas do futebol. Logo de seguida inclina-se para a frente e cai inanimado no chão. A gravidade da situação foi de imediato reconhecida por todos. O que poucos parecem ter percebido é que, a partir daquele momento, a situação já não era do domínio público mas do domínio privado.

Quem parece ter percebido isso foi o realizador da Sport TV. A emissão não podia terminar, nenhum espectador iria entender, além de que o jogo ainda não tinha sido dado como terminado. O realizador não quis mostrar a morte em directo. Habilmente mostrou várias imagens do público, de jogadores, mas evitou mostrar imagens com zooms apertados, que incidissem nas manobras de reanimação. Isto foi um grande exemplo do “mundo do futebol”, que certamente não seria seguido por estações como a TVI.

Mas este momento de respeito pela dignidade do jogador passou despercebido, em relação ao que depois aconteceu. Ainda o jogador estava no campo nas manobras iniciais de reanimação, já estava um jornalista da RTP em directo a desvalorizar o assunto e a perguntar a um adepto do V. Guimarães que saía, como ia ser agora depois de mais uma derrota. Os mais diversos canais começaram a passar as mesmas imagens do jogador a cair inanimado vezes sem conta. Depois vieram as entrevistas a algumas sumidades, que mostraram a sua sabedoria face aos mortais. Alguns vieram com termos ultracomplicados sobre doenças do coração, como se alguém fosse entender o que diziam. Outros vieram levantar a questão assaz pertinente dos estádios do Euro 2004, devido ao atraso da ambulância em entrar no estádio e das dificuldades na manobra.

Fico sempre estupefacto com a clarividência destes visionários, que só têm certezas, que não colocam um “se” ou um “talvez” em nada, que nos momentos difíceis têm a coragem de por o dedo na ferida... Porque eles têm a certeza que uma ambulância demorou 15 minutos a entrar no estádio porque não foi possível ser antes. Não se questionaram se a ambulância não chegou antes porque não era ainda necessária, havendo coisas mais urgentes a tratar. E esquecem-se que a ambulância chegou e ainda esteve alguns minutos à espera até ser possível transportar o jogador. Mais ridículo ainda é a ênfase que se deu a ter que se retirar uma bandeira de canto para a ambulância entrar, como se tal acção fosse tão complicada como retirar uma baliza ou derrubar uma bancada. A bandeira de campo levou 5 segundos a retirar, não perceberam isso?

Talvez este seja um bom exemplo de que há coisas que não se podem evitar. Feher morreu e não havia nada que o pudesse evitar. É quase impossível conceber uma situação de paragem cardíaca que possa ser socorrida de forma mais rápida. É claro que situações destas têm de ser previstas e seria escandaloso o jogador ter morrido por falta de assistência, ou por não ter chegado ao hospital a tempo. Mas não foi isso que aconteceu. Mesmo assim há pessoas que não resistem à oportunidade de brilharem um pouco. É um pouco sintoma da falta de respeito pela vida e pela morte – que no entanto veio de pessoas fora do futebol, assinale-se.

Hoje de manhã andava a pé e uma ambulância ia com urgência em direcção ao hospital Curry e Cabral. Talvez alguém em perigo de vida, mas somos insensíveis a isso, com esquemas mentais há muito consolidados que evitam enfrentar o assunto. Quando um jogador de futebol quase morre em directo, tentamos desviar o assunto, ou tornando-o demasiado técnico ou encetando reflexões estéreis. A morte ainda assusta muita gente, que têm dificuldade em a enfrentar. Mas negar a morte é negar a vida.




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quarta-feira, janeiro 21, 2004

Piercings e inocência


Em muito locais Lisboa encontram-se cartazes, colados de forma meio anárquica, a anunciar espectáculos, lançamentos de novos discos e filmes, propaganda política de sindicatos e do Bloco de Esquerda, entre outros. Aqui está a prova que a esquerda anda sempre junto à cultura, porque ninguém está a ver um cartaz do PP ao lado de outro a anunciar o circo Cardinali no Parque das Nações. É assim que eu, andando a pé para o almoço, vou aumentando a minha cultura geral e estando a par das novidades.

Um cartaz que em chamou a atenção tinha duas jovens, com os rostos juntos em grande plano, sendo uma loura, do lado esquerdo e olhando de frente e outra morena, à direita olhando um pouco de lado, também, supostamente, para nós. Ambas tinham a língua estendida para mostrarem bem o piercing instalado. Várias coisas me poderiam suscitar referência, como a beleza das raparigas, o seu ar provocativo, ou ainda que se fossem dois homens naquela posição todos diriam que eram gays mas assim ninguém comenta. Mas na verdade o que me chamou a atenção foi uma frase abaixo, que referia a “Inocência Perdida”. Também havia menção ao número 13, provavelmente a idade das meninas (será que este post passa a ser vagamente pedófilo?).

Se bem percebi, a mensagem era que duas jovens de 13 anos, com piercings na língua e ar provocativo, só pode querer dizer que já não são inocentes. Não sei porquê, não consigo engolir esta ligação directa. Sempre achei que as pessoas que gostam de exibir piercings bastante inocentes (nem todos os que os usam os exibem). Mas talvez seja eu o, por me parecerem desinteressantes e enfadonhas pessoas que com muita ânsia de protagonismo e de se mostrarem diferentes.

Isto faz-me lembrar de uma reportagem que passou há uns anos atrás na TV, de um indivíduo que estava a colocar um piercing no pénis, numa altura em que ainda era semi-novidade em Portugal. Dizia que era para fazer uma surpresa à namorada, mas assim deve ter feito mais que uma. Não sei porque razão concordou que o filmassem durante as manobras de incrustação, se para ser conhecido (não me lembro da cara dele), ou para que o achassem corajoso (confesso que não tinha coragem para fazer o mesmo). O certo é que no dia seguinte ouvi muitas pessoas falarem no assunto, mas o que mais comentavam era a sua “pila muito pequenina.” Não sei se era propriamente disto que ele estaria à espera. Mais um post sem grandes conclusões...




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segunda-feira, janeiro 19, 2004

Como lidar com pessoas desagradáveis?


Desenganem-se se pensam que vou dar aqui uma lição comportamento ou exibir uma pretensa sabedoria. Na verdade, escrevo este post para tentar encontrar a resposta. Não me preocupam aquelas pessoas mesmo muito desagradáveis e que nos fizeram algo muito mau. Essas até nos podem motivar, estimular a criatividade e dar energia – acabam por ser nossos mestres, se os sabemos utilizar com inteligência. Porque se alguém me faz muito mal eu só tenho duas opções. Ou sou superior a isso e ignoro, sem me deixar perturbar. Ou então, se tal não for viável, parto a louça toda, de forma brutal. Para mim, não é hipótese fazer de conta que não ligo e depois enveredar por vinganças mais ou menos dissimuladas, entrando num ciclo sem fim.

Mas as pessoas desagradáveis a que me refiro são outras. São aquelas a quem somos forçados a conviver diariamente (colegas de escola, emprego, de grupos de actividades, por vezes familiares e vizinhos). Algumas delas pareciam de início agradáveis, mas vamos descobrir que são fúteis, mesquinhas, que nos utilizam para terapia, que nos querem transmitir os mesmos ódios a que eles se dedicam. São pessoas a quem sorrimos, tivemos alguma estima e chegámos a abrir o coração. Mas depois constatamos que fomos ingénuos, que nos abrimos a alguém completamente encerrado, que apenas vê nos outros uma forma de exprimir os seus caprichos. É ambígua a sensação em relação a estas pessoas. Por um lado ainda sentimos alguma simpatia por elas, devido a uma boa impressão inicial, mas uma repulsa ao mesmo tempo por aquilo que a pessoa realmente é.

Acabo por não me descobrir o que fazer com estas criaturas. Tiram-nos a energia, a vontade de conhecermos outras pessoas, e também a disposição para nos abrirmos e expressar aquilo que somos. De tão insuportáveis que são, há o risco que nos tornemos como elas, pequenas, vazias, sem alma. Talvez seja por isso que procuro tantas vezes a solidão...



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domingo, janeiro 18, 2004

Tanta pressa para quê?


O mundo moderno encerra em si estranhos comportamentos que acabaram por fazer parte do padrão dominante. As pessoas andam sempre em correrias, sem tempo para nada, sempre com pressa de chegar a algum lado. Impacientam-se nas filas de trânsito, em que alguns metros de terreno ganhos ou perdidos se transformam em grandes vitórias ou derrotas, por vezes à custa de arriscadas manobras. Um sinal vermelho no memento errado pode estragar um dia. As buzinam apitam por tudo e muitas vezes por nada. O próprio pensar é apressado, aos solavancos, sendo talvez uma das razões de serem cometidos tantos atropelos à lógica.

Acontece, por vezes, se a pressa justificável. É preciso ir buscar o filho à escola, apanhar o transporte público, chegar a horas à entrevista de emprego ou ao exame, não deixar que a pessoa amada fique à espera… Mas mesmo quando não há nenhuma urgência ou algo marcado, a agitação continua. Há sempre pressa que o momento presente termine, como se houvesse algo muito importante para depois que não pudesse esperar. Sempre o depois, o depois…. O depois.

Mais tarde ou mais cedo, o depois chega. Terminadas todas as tarefas deprimentes, enfadonhas, repetitivas, o depois, o momento da verdade, chegou. Mas aí, o indivíduo que sempre se apressou para chegar ali, não estava preparado. Sente-se perdido e não sabe o que fazer.



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sexta-feira, janeiro 16, 2004

Comentários à experiência


A partir de hoje este blog vai ter um sistema de comentários. Irá estar à experiência porque tenho ainda muitas reticências em relação a isto. Mas um mail que me enviaram fez-me pensar que poderia ser interessante. Vamos ver.

Entretanto, mesmo uma pequena modificação como a introdução de um sistema de comentários, dá sempre umas pequenas dores de cabeça. Por momentos parecia que tinha arruinado o blog, com o desaparecimentos de quase todos os posts, mas tudo se acertou. No entanto, o gentil comentário que foi feito apareceu em todos os posts, e não apenas no último. Será isto normal? Tenho que fazer alguns testes.




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O melhor blog do ano – Kafkiano


Não é nada do meu género fazer avaliações do ano que acabou, até porque, como já disse, este fim de ano é artificial e não é o fim de nenhum ciclo importante para a maior parte das pessoas. Por outro lado, classificar os blogs, dividi-los por categorias e depois atribuir os “prémios” àqueles blogs mais conhecidos, parece-me um exercício pueril. Mais, para quem não sabe o que é um blog (mais de 90% dos portugueses) e vai partir à sua descoberta por estas alturas, vai achar completamente ridículas estas classificações. Mas, quando há algo excepcional, até eu abro uma excepção.


Para mim o melhor blog do ano foi o Kafkiano. Não conheço pessoalmente a autora nem ninguém me pediu para elogiá-la. Não é o primeiro blog que leio todos os dias nem sequer o leio diariamente. Prefiro o ler espaçadamente, quando tenho a disposição correcta para assimilar as palavras. Classifico-o como o melhor blog do ano porque é o único, dos muitos que já li, em que cada palavra e cada imagem são importante. A autora mostra o seu talento nato (seguramente também com muito trabalho para ter chegado até aqui) em cada post, sempre imprevisível, em que o brutal e o subtil se mesclam de forma encantatória. Há muitos blogs que leio com agrado, que me são fontes importantes de informação, conhecimento e diversão. Mas o kafkiano é o único que realmente me impressiona.




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Woodstock e os festivais de música


Woodstock é um nome mítico ainda para muitas pessoas, boa parte delas ainda não nascida na altura da realização do famoso festival de música. Local de liberdade, novas harmonias, paz, utopias … Frank Zappa, de inspiração anarquista, um dos músicos mais brilhantes do século XX e também uma das mais ferozes vozes anti-sistema, disse que Woodstock não passava de um pretexto para um bando de jovens irresponsáveis consumirem drogas e passarem uns dias fora de casa sem os pais os chatearem. Achava que aquilo não iria contribuir em nada para a resolução dos problemas do mundo. O certo é que os hippies de outrora transformaram-se nos yuppies de agora.

Em Portugal também tivemos o nosso Woodstock, em Vilar de Mouros, há muitos anos atrás. Acredito que as pessoas que estiveram à frente do evento tenham realmente tentado fazer algo especial, com a participação de estilos musicais muito diferente, num espírito aberto do género “Não gostamos uns dos outros mas por uns dias vamos fingir que isso não interessa.”

De há uns anos para cá a ideia dos festivais de Verão voltou a ganhar ânimo. Mas agora o pragmatismo impera e nada daquelas esquisitices de variar muito nos estilos de música, porque isso só atrapalha na finalidade desejada. Os festivais passaram a ser um ritual de iniciação e de um reviver dessa iniciação ano após ano. Trata-se de uma iniciação às “coisas boas da vida”, como o álcool, drogas, sexo desajeitado e, em alguns casos, a um tipo de marginalidade filosófica. Muitos adolescentes, a partir dos 12, 13 anos, vêem nestes festivais de “música” a ocasião de perderem a virgindade, fumar umas “ganzas” e fazer todo o tipo de disparates sem ninguém os criticar.

Na verdade, trata-se de um ritual de iniciação à imbecilidade. Daqui para frente o iniciado só tem dois caminhos possíveis. Ou se afunda cada vez mais, tornando-se alcoólico, passador de droga, chulo/prostituta e em alguns casos apresentador de televisão. Ou então, continua a estudar, arranja um bom emprego em que faz todos os dias a mesma coisa, casa com alguém tão enfadonho como ele, torna-se bom pai/mãe de família, severo e que não pode ouvir um palavrão, e que a maior ambição na vida é viajar um dia num cruzeiro de luxo ou aparecer numa revista social. Não sei qual das opções é a pior, por isso faço um apelo aos jovens deste país para que ponderem seriamente a vossa ida ao próximo festival de música. Mais vale continuar a ser virgem por uns tempos do que acabar num destes estados deploráveis.




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quarta-feira, janeiro 14, 2004

Como vai a sua intimidade?


Os blogs masculinos são, em geral, um mundo de comunicação fria e algo distante. Os bloggers masculinos falam de coisas sérias, ou pelo menos de forma séria. As excepções são os blogs de humor (ver links), mas mesmos estes são feitos com seriedade. Já os blogs femininos são diferentes e, para mim, são sempre imprevisíveis. As nossas bloggers, aparentemente, despem a sua alma nos posts com muito mais facilidade. Aonde eu queria chegar é que os blogs femininos têm mais intimidade, ou assim parece.

Mas talvez haja diferentes percepções sobre o que se entende por intimidade. Para alguns, a intimidade implica um partilhar de algo. Assim, a intimidade só existiria através de outra pessoa, o amigo íntimo, o amante, o familiar. Mas para outros, tal intimidade, por si só, é apenas uma ilusão. Afirmam que a intimidade começa no próprio indivíduo e aí se desenvolve e cresce, se for efectuado um esforço nesse sentido. Só depois de uma certa maturação da intimidade consigo próprio, fruto de uma profunda introspecção, poderá a alguém realmente comunicar com outras pessoas e a partilhar intimidade com elas. Isto seria válido para todos os domínios da acção humana.

Mas o que acontece, de facto? O nosso modelo de vida actual, fortemente catalisado pela televisão, cinema, livros e revistas, incute a necessidade de procurar a intimidade exclusivamente virada para o exterior. Entretanto, as pessoas vivem desconhecendo aquilo que são e aquilo que fazem em cada momento. Não se apercebem da postura torta, dos gestos toscos, do olhar sem rumo. Nem se apercebem do mal estar físico, de dores nas costas, mãos, cabeça, habituando-se a achá-las normais por desconhecerem o que é o bem estar. Tal como não se apercebem das faltas da atenção, dos pensamentos caóticos, dos prenúncios de variação de humor. Espantam-se por as suas disposições alterarem-se com o clima, e dão por si em estados apáticos ou com excitação sem controlo.

Todas estas coisas fazem parte da natureza humana e talvez não tenha interesse eliminá-las, porque nos ajudam em muitas coisas e são oportunidades de fortalecer o carácter. Mas a falta de intimidade interior faz com que não se dê importância a nada disto, achando que tudo se resolve com ajuda exterior (medicamentos, bens materiais, estatuto social, amor...). Sendo assim, nada fazem para se ajudar a si mesmos. Alguns param para pensar no que estão a fazer às suas vidas. Talvez descubram o interesse para desenvolver a sua auto-intimidade. Aos poucos descobrem que este virar para si mesmo, efectuado de forma correcta, acaba também por ser uma abertura para os outros. É a verdadeira intimidade.




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terça-feira, janeiro 06, 2004

Marcel Marceau no CCB


A pantomina pode ser uma coisa estranha. O mimo, silencioso e de cara pintada de branco, é muitas vezes uma figura que causa fascínio mas também repulsa e medo a algumas crianças. Alguns acham uma coisa sem sentido, e estúpido não se poder falar. Marcel Marceau, O Mimo, faz-nos esquecer todas estas questões desde o primeiro momento em que entra em palco. Actuou no CCB no dia 27 de Dezembro de 2003. Com quase 81 anos e mais de 55 de carreira, é ainda o maior mimo vivo e sem qualquer rival à altura. Só, no palco e sem cenário, actuou em silêncio utilizando apenas o movimento do corpo e a sua expressão facial. Numa actuação a solo como mais de duas horas, divididas em duas partes, apresenta uma invejável forma física. Poderá já não ter a elasticidade de movimentos de pernas de outros tempos mas tem aquela coisa especial e misteriosa que mais ninguém tem.

O primeiro quadro é sobre a criação do mundo, e as suas mãos movendo-se de forma que quase nos hipnotiza, delineiam várias criaturas nas fases da evolução. Prossegue com diversos quadros em que interpreta as mais diversas personagens, como no jardim público, em que vemos o tipo que passeia o cão, os velhos no banco do jardim. Mas não só, conta também estórias, como um julgamento no tribunal, em que interpreta as principais personagens. Também delineia espaços, e apenas com alguns gestos imaginamos estar frente a um imenso campo aberto, numa apertada sala, numa gaiola ou ainda num navio em mar revolto. Tudo com uma naturalidade impressionante, que nos faz ver o que não está lá como se estivesse mesmo. Tudo também com um humor subtil e cativante.

Talvez o momento alto da primeira parte tivesse sido o quadro mais curto. De frente para o público, vai simulando um andar sem sair do mesmo local, em que interpreta as várias fases do homem, desde a infância até à morte, apenas mudando a expressão do rosto e o modo de andar, com a curvatura das costas alterar-se e outros pequenos detalhes. É um quadro impressionante, que levou uma vez um crítico a escrever que, na naqueles 2 minutos, Marcel Marceau exprime mais coisas que muitos romancistas em vários volumes de escrita.

A segunda parte do espectáculo é composta por vários quadros em que Macel Marceau interpreta sua personagem Bip. Tratam-se de quadros essencialmente humorísticos, que nos descontraem e fazem rir. O espectáculo termina com o famoso quadro do construtor de máscaras, em que várias máscaras invisíveis são colocadas, e o que na realidade muda é a expressão facial. Trata-se de o quadro especial para terminar, que tem de tudo, técnica, virtuosismo, requinte, cultura, humor e termina de forma surpreendente – mas só quem lá esteve pode saber como foi, estas palavras nada mostram.

Não vi na audiência nenhuma das nossas figuras conhecidas. Deveriam estar ali artistas em geral para aprender alguma coisa com o Mestre, especialmente actores e outros que actuem em palco. Como fui à sessão da tarde, poderia ter sido diferente na sessão da noite. Mas é estranho, não ter visto ali artistas, intelectuais, as gentes bens falantes que inundam as nossas televisões para ver um dos maiores artistas do nosso tempo. No entanto, o CCB estava cheio. Definitivamente, as pessoas cultas deste país não são as mais conhecidas.




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segunda-feira, janeiro 05, 2004

Ano novo, nada de novo


Há que começar 2004 a falar mal de algo de forma vigorosa. Assim, de repente, estou com vontade de ser um desmancha prazeres e deitar abaixo as comemorações da passagem de ano. Pensando melhor, não é sobre os festejos de que falarei mas do significado conferido à data.

Foi preciso ter começado a trabalhar para perceber o verdadeiro significado da quadra festiva Natal – Ano Novo. Não é o Natal que importa, com os seus significados possíveis ou mesmo ausência deles, nem a saudação do novo ano, das novas esperanças. Tudo isto são pretextos para estar duas semanas sem trabalhar.

Qual é o significado especial do Ano Novo? No hemisfério norte é uma época fria, muitas vezes de mau tempo. Em termos cósmicos, poderia ter algum sentido comemorar no dia 21 de Dezembro, por ser o dia mais pequeno do ano em termos de luz solar, mas ninguém atira foguetes por coisas pequenas. Por outro lado, 31 de Dezembro não é o fim de ano de quase nada. É certo que é quando acaba o ano contabilistico, mas não acaba o ano lectivo, nem o judicial, nem é quando a esmagadora maioria das pessoas tira férias prolongadas. Além disso, o novo ano acontece já em pleno inverno, não é a transição para coisa alguma.

Mas se a passagem de ano não tem nenhum sentido especial, mero fruto da aritmética, que mal há em lhe dar um e comemorar isso? No fundo é isso que acontece. Comemoramos coisas sem sentido, mas achamos que é tonto estar alegre sem um motivo especial, e por isso arranjamos uns significados meio disparatados. Parece que estar alegre é um crime. Na Roma antiga havia mais dias de festa do que de trabalho. Era isso que queríamos. Somos um bando de preguiçosos, mas não o admitimos. Não gostamos de trabalhar mas achamos que é dar parte fraca admitir isso.

Uma vez disse numa entrevista de emprego que a satisfação no trabalho estava directamente ligada à qualidade do trabalho que realizamos. Será que é verdade? Hoje em dia penso em outra coisa. Importante é ter uma vida para lá do trabalho – e quase ninguém tem. O trabalho é para muitos crime e castigo. É crime porque se trabalha mal, de forma defeituosa, com pouca seriedade. Mas há o sentimento de culpa e vem o castigo auto-inflingido, que muitas vezes passa por ficar 9, 10 e mais horas no local de trabalho, para fazer algo que se podia fazer perfeitamente em 7 horas ou menos. Claro que em muitos locais as pessoas passam muito tempo no trabalho para dizerem que trabalham muito, pobres coitados. Estas pessoas precisam de fogo de artifício e muito álcool, sem dúvida.

Os noticiários mostraram as comemorações do novo ano um pouco por toda a parte. Talvez tenha sido impressão minha, mas as dos portugueses foram diferentes. Era raro encontrar um português que não estivesse alcoolizado. Talvez seja fruto do critério dos jornalistas, que preferiram ir mostrar uns quantos bêbados a balbuciarem expressões sem nexo. Longe de mim ser purista e querer condenar alguém por beber demais uma vez por ano (também bebi...), mas neste contexto internacional, a sensação que fiquei é que os outros comemoraram e nós bebemos para esquecer.

Uns dias depois da passagem de ano rapidamente se esquecem as amarguras de 2003. Mais rapidamente se esquecem os prognósticos para 2004, os grandes planos de mudança, o experimentar ir por outros caminhos, as promessas feitas com o copo de champanhe (espumante barato) na mão. Ainda assim fica a esperança de 2004 ser melhor que 2003...




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