sexta-feira, abril 30, 2004

Promessas


Como ficou prometido, pode ser vista aqui um pouco da minha humilde participação num espectáculo referente ao 25 de Abril. Quando me for possível, adicionarei algumas fotos dos ensaios no fotolog.



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quinta-feira, abril 29, 2004

Fim de semana comunista (2)


Apesar das dúvidas históricas que o 25 de Abril me levanta, que espero um dia ver esclarecidas, sempre lhe associei a palavra liberdade. Não que achasse que essa liberdade tivesse acontecido de um dia para outro mas, pelo menos, a partir daí foi possível conquistá-la e realizá-la individualmente. Por isso, foi com honra que participei nas comemorações oficiais do 25 de Abril em Setúbal (a forma dessa participação será explicitada por algumas fotos, que colocarei o link assim que for possível). Apesar de ter sido um convite de uma autarquia comunista, a nossa participação não teve quaisquer contornos ideológicos.

Já na madrugada de 25 fui a um bar comunista e observar, deliciado, o ambiente único do local. Desenganem-se os que pensam ser um local conspirativo, frio, onde se encontra a uniformidade. Nada mais longe da verdade. O local, frequentado sobretudo por jovens, é a prova que o comunismo é possível e realizável. As pessoas têm um ar enamorado. Estão felizes, sentem-se em profunda comunhão uns com os outros, os abraços sucedem-se. Nem todos são comunistas, alguns estão por lá apenas pelo enorme calor humano existente na comunidade.

Ao contrário do que se poderia imaginar, não é o ódio que os une. Depois de se ouvir “Grândola Vila Morena”, gritam em uníssono, “Revolução Sim, Fascismo nunca mais!”, com uma energia colectiva extraordinária. Já a notícia de que Durão Barroso e Paulo Portas tinham sido vaiados nas comemorações desse dia apenas deram origem a alguns sorrisos e comentários de circunstância. Os cartazes nas paredes faziam apenas menção ao 25 de Abril e ao partido, e não se viam insultos à direita, a Bush ou a outros “inimigos declarados”.

A frase que mais ouvi foi “Aqui encontra-se de tudo”. Skin-heads comunas, ex-nazis que ainda têm suásticas tatuadas mas que se converteram, filhos da “alta burguesia”, pessoas normais, outros que ninguém sabe quem são. Todos são bem recebidos. Por um preço simbólico, encheram-me um copo de um bom Moscatel. Ninguém me tentou converter e nem sequer perguntaram as minhas opiniões políticas. Percebe-se facilmente que num ambiente destes, quase místico, certas recordações ficarão para o resto da vida. Tal como certas convicções.

O objectivo final do comunismo é dar à sociedade esta felicidade comunitária. É compreensível que quem a sinta, tenha uma enorme tentação em a querer ver espalhada universalmente. Chegar lá é complicado, há os que não acreditam, por ignorância ou estupidez, e há mesmo aqueles que se lhe opõem. A partir daqui facilmente os fins começam a justificar os meios.

No meio de tudo isto está uma ilusão base. A de que aquela felicidade, que é realmente sentida, é possível realizar a partir de acções sociais e políticas. O processo poderá ser conturbado, levar muito tempo, mas se for bem conduzido levará a um bom fim. No entanto, aquela felicidade comunitária é um processo típico dos inícios de movimentos, e também algo tipicamente ocidental, registado desde a Grécia Antiga. Com o tempo, os jovens comunistas irão perceber que é difícil manter este êxtase. As rotinas partidárias, o contacto com a realidade fora do grupo, o próprio poder que o partido vai exercendo – tudo isto mata a espontaneidade que fazia o comunismo funcionar. O indivíduo poderá ser comunista até morrer, mas só será feliz uma vez na vida.



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quarta-feira, abril 28, 2004

Fim de semana comunista (1)


Há uns anos atrás havia uma sensação de que a data 25 de Abril em breve seria esquecida, ficando apenas na mente dos mais saudosistas, talvez já um pouco desligados da realidade. Mas este ano tudo pareceu voltar a avivar-se. Abriu-se o baú das recordações que, como sabemos, não são iguais para todos. Se alguns se identificam inequivocamente com a data e com os acontecimentos, lamentando apenas não se ter ido mais longe, já outros assumem uma posição bastante crítica. E será nestes que reside a maior novidade.

A imagem oficial era, e ainda é, que quem não estiver totalmente a favor dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974 é porque é um adepto do antigo regime, da ditadura e um fascista. Recorde-se que os partidos com este pendor são proibidos em Portugal. Mas agora muitos começam a assumir claramente que nem se identificam com o Estado Novo nem com aquilo que se quis instaurar com o golpe de estado. Catadupas de artigos, muitos em blogs, vão tentando fazer história sobre os acontecimentos. Pelo que li, posso dizer algumas coisas. Uma é que a História nada tem de ciência e outra é que só me conseguiram baralhar.

Algo mexe. Os cartazes “Abril é Evolução”, transformados em “Abril é Revolução”, mostram que há sentimentos profundos em alguns, mas também que há ainda pouca consciência do que é a liberdade. Tal como a polémica envolvendo o CDS/PP na não comparência numa recente cerimónia de homenagens. Não sei das razões mas fiquei estupefacto com a estupefacção geral, como se fosse “obrigatório” estar lá. Se o 25 de Abril significa de facto liberdade, então não lhe ponham amarras e não se decretem rituais obrigatórios.

Sobre o título deste post, ele ficará mais bem esclarecido na segunda parte.



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sexta-feira, abril 23, 2004

A origem dos desportos radicais


Em tempos idos era costume os pais darem sovas monumentais nos filhos. Será de espantar que algumas destas “alegadas vítimas” mostrem, muitos anos depois, uma grande admiração por quem os agredia de forma brutal. Questionados, a admiração é explicada de várias formas. Por vezes, é a morte dos pais que os perdoa automaticamente. Mais frequente é a noção que, apesar dos defeitos, estas pessoas duras sabiam impor respeito, ao contrário do que acontece hoje em dia. Dizem ainda alguns que, no fundo eles tinham amor pelos filhos mas não o sabiam exprimir, sendo esta era a forma de os educarem e impedir que eles seguissem maus caminhos.

Proponho outra explicação: Adrenalina. No fundo, a coça mais não seria que uma descarga ritual de adrenalina. Nos casos extremos, não havia dia que não houvesse o “correctivo”. O pai severo muitas vezes parecia procurar pretexto para se irar e começar a lançar o terror. Numa conversa há tempos, alguém me falava desses tempos, há muitas décadas atrás. Foi bastante claro, pois afirmou no dia que não apanhasse sentia que lhe faltava algo, assim como ao seu pai. «Eu estava viciado naquela violência», afirmou. E continuava, com estórias que mostravam que tudo aquilo lhe fornecia uma energia incrível, sentindo-se invencível.

Os tempos mudaram, agora bater nos filhos já vem sendo coisa rara. Muitos pais já nem querem ralhar aos filhos, pensando que o melhor que lhes podem fazer é serem o mais protectores possível. Não admira que as crianças que assim vivem sufocadas, ao crescerem, procurem o perigo, a agitação e adrenalina que nunca tiveram em desportos chamados radicais mas que deviam é ser chamados infantis.

Bem, isto foi uma provocação. É melhor não nos apegarmos muito às nossas teorias se não as podemos colocar à prova.



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terça-feira, abril 20, 2004

Olhares


Avenida da Liberdade em Lisboa. Ando a pé e de carro, mas não conduzo. Reparo nas arquitecturas, umas decadentes, outras em recuperação, outras novas. Não há brilho mas ainda algum esplendor resta. Não um esplendor de um Estado Novo, que de novo nada tinha, mas de um acumular de séculos e de fluxos exteriores que ali deixaram a sua marca. Num repente, tudo apresenta-se estranho, exótico. Pareço estar algures num local distante e misterioso. Mas abandonado pelos seus construtores e suavemente invadido por migrantes procurando algo.

Carros de luxo passam por mim, cheios de arrogâncias no seu interior que, no entanto, parece vazio. Alguns dementes, alheios na sua realidade, chamam minha atenção. Impressionam-me e fascinam-me. Naquela overdose de automóveis, a loucura parece ser a solução natural. As passadas traçam linhas erráticas, frementes e desesperadas. Não têm um destino, nem um propósito. E nem têm de ter.



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quinta-feira, abril 15, 2004

Considerações papais


Desde que me lembro, a figura do papa preenche as minhas memórias. Lá está um senhor de branco, acenando com gestos suaves uma multidão reverente. Em criança pensava que o papa era uma pessoa diferente, assim uma espécie de Jesus Cristo, uma pessoa com dons especiais que mais ninguém teria. Interrogava-me se ele também comia. bebia e se iria à casa de banho... Muitas vezes achava que não, porque alguém tão puro não faria coisas destas. E nem devia ter órgãos sexuais.

Mais tarde, já convencido que os papas seriam pessoas fisicamente idênticas às demais, estranhava terem nomes como os reis, Paulo VI, Pio X, João Paulo II. Era-me estranho conciliar isso, que atribuía um estatuto de poder, com a imagem de pessoa religiosa, que nada seria mais que um guia, alguém bom e desapegado de bens materiais. Não demorou muito até saber que tinham existido papas cruéis, assassinos, que tiveram filhos e amantes e até uma papisa que dera à luz em plena rua. E afinal, o cargo do papa tinha sido muitas vezes apenas uma função de poder, a que muitos reis se submetiam e juraram fidelidade. Recentemente vi uma foto que a tudo remetia ao papa sem ele lá estar. De facto, na foto está a cadeira papal vazia, e num plano mais próximo encontra-se um cardeal numa postura de arrogância desmedida, talvez por se encontrar numa sala quase toda coberta de ouro.

O actual papa é uma figura peculiar. Tendo posições extremamente conservadoras em alguns aspectos e parecendo muitas vezes defender uma prática religiosa “intra-muros” bastante pobre e limitativa, ao mesmo tempo revela uma abertura ao exterior notável, no diálogo com outras religiões (isto apesar de alguns comentários disparatados sobre o budismo mas que se desculpam a pessoas que de aspectos espirituais nada sabem), no admitir de erros passados e do obscurantismo da igreja católica em relação à ciência, além de tanto criticar o marxismo como o capitalismo desenfreado.

João Paulo II tem vindo a substituir-se a si próprio, indo contra o desejo de muitos que não o acham em condições de desempenhar as funções. A actual imagem do papa está longe de um vigor de outros tempos, aparentando ser apenas um velho decrépito, que se baba e balbucia palavras incompreensíveis que mais fazem lembrar uma ovelha balindo. Os católicos têm vergonha do seu líder, mas pelo que sei a sua doença não afecta a sua lucidez. O problema está no tipo de liderança que se quer. Se for liderança espiritual, então não será por o papa estar numa condição física má que isso lhe retira condições. Seria se existissem sinais graves de senilidade. Mas outros há que admiram a não renuncia do papa, vendo nele a imagem de Cristo, que não desiste face ao sofrimento. Mas não é liderança espiritual que se procura num papa. Quem ocupou o cargo nunca a deu, por isso também ninguém a procura verdadeiramente.



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segunda-feira, abril 12, 2004

Um olhar diferente sobre os políticos


Há que varrer um pouco o negativismo, começando por aquele que se encontra neste blog. Fui invadido pela tentação invulgar de elogiar políticos, sem qualquer ironia, esforçando-me o máximo para lhes vislumbrar qualidades. É o que farei neste post, referindo-me aos líderes partidários nacionais, porque há políticos que também são pessoas.

Durão Barroso teve uma longa e penosa travessia no deserto como líder da oposição. No fundo, nada liderou, nem a oposição nem o seu partido, perdendo apenas a sua razoável imagem como antigo ministro. Chegou a primeiro-ministro em condições difíceis, não só porque uns fugiram mas também porque poucos se lhe quiseram juntar. Mal habituados a uma passividade guterriana, os portugueses ficaram surpreendidos com uma série de medidas assumidas pelo novo governo e talvez Durão Barroso tenha ganhado a admiração inconfessa de muitos, apesar da crítica ser a nota dominante.

Paulo Portas mostrou que também sabe o que é o sacrifício. Acima de tudo, elogio-lhe o sentido de estado. O CDS/PP apenas ganhou alguma relevância eleitoral devido aos discursos inflamados e populistas de Paulo Portas. Assumindo agora uma postura bastante mais serena, Paulo Portas estará a condenar-se a si e ao seu partido a uma morte política.

Ferro Rodrigues foi dos poucos ministros que escapou razoavelmente da derrocada do PS, fruto do seu trabalho determinado. Já podia ter-se demitido várias vezes, mas prefere continuar a se sacrificar, ao invés de deixar que outros o façam. Queima-se a si mesmo deixando o PS quase intacto.

Carlos Carvalhas é um exemplo de educação. As suas convicções fortes contrastam com a sua postura serena, dando a imagem de uma pessoa incapaz de impor algo. Talvez tenha passado despercebido a muitos, mas Carvalhas já admitiu há alguns anos que a União Soviética não tinha sido um modelo a seguir.

Francisco Louçã tem três características que fazem falta a muitos políticos: Inteligência, energia e criatividade. O Bloco de Esquerda é acusado muitas vezes, a meu ver justamente, de ser uma força política que avança ideias irreais, com a irresponsabilidade de quem sabe que não as terá que levar à prática, jogando habilmente com uma comunicação social benevolente que lhes faz uma boa propaganda às suas bandeiras. No entanto, para além deste folclore, o BE apresenta também contributos bastante mais esclarecidos e discretos num parlamento em que Louçã é sem dúvida um dos seus melhores oradores.



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quinta-feira, abril 08, 2004

Mais reacções


Um comentário de um leitor ao meu post anterior é de grande pertinência. Estarei eu a utilizar o blog para vir desabafar para aqui os meus casos pessoais? Antes demais, quero dizer que este post não é uma resposta directa ao comentário, mesmo que assim pareça. O que pretendo explicar é que o fundamental é não se tratar de uma questão pessoal, o que já tinha previsto fazer. Mas vamos por partes.

Este blog começou por ser quase etéreo, falando dos assuntos muito em abstracto, fugindo das actualidades e, sobretudo, dos assuntos pessoais. Aos poucos foi mudando e foi ficando mais humano. Hesitei em alguns posts, pelo risco de serem demasiado humanos. E nunca hesitei tanto como no último. A questão está na diferença entre o público e o privado. Mas o fundamento é a liberdade.

Felizmente que possuo vários grupos de amigos em que me sinto livre e entre os quais exprimo a minha criatividade. No entanto, não tomo a árvore pela floresta, e não consigo deixar de assinalar que a expressão de certas liberdades em público se encontram seriamente ameaçadas. E falo de liberdades elementares, não daquelas liberdades que limitam a liberdade dos outros. A razão do meu post foi apenas essa – correndo o risco de parecer algo distinto.

Sinto que chegou o momento de tomar uma atitude. Insultos públicos merecem ser publicamente denunciados, especialmente se seguirem um padrão bem conhecido. Acho que vivemos os primeiros sintomas de uma auto-destruição europeia. A mentalidade do espírito aberto desapareceu, e isso é o fim de tudo. Começou a era das certezas, da ausência de dúvidas, do pensamento perfeito. Como alguém fez notar, o pensamento perfeito é totalitário, porque não admite excepção.

Um blog serve de pouco. Não serve para mudar o mundo. Chamará a atenção de poucos. Só convence quem já está convencido. Então, para quê escrever? Acho que ainda há uma boa razão. A liberdade. Enquanto me for possível escrever livremente para um público sem fronteiras, apesar de muito reduzido, é o que farei. No fundo, acho que a melhor homenagem que posso fazer à liberdade é ser livre.

O subtítulo deste blog mudou. “Pensar. Escrever. Esquecer.” Já não me parece adequado. A minha última série de posts já vinha no sentido referir a morte anunciada da liberdade. Gostaria que me mostrassem que estou enganado.



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terça-feira, abril 06, 2004

Reacções


No livro “Impasses”, de Fernando Gil e Paulo Turras, é dito que se chegou a uma situação tal, com tanta má-fé, irracionalidade e insultos, que começa a ser difícil manter certas amizades. Chego também à conclusão que pode ser impossível manter muito mais coisas.

Falo de falta de liberdade, de opressão, de insultos de ameaças. Falo de mim... Agora num almoço um colega meu afirmava que se tinha de manter em silêncio no 4º piso para não ser “apedrejado”. Logo lhe afirmei que o mesmo se passava comigo no 5º. Quem não é “anti-qualquer-coisa” caiu em desgraça. E se der mostras de querer defender, mesmo que timidamente, o lado “errado”, é melhor que prepare para as consequências.

Foi algo como isso que me aconteceu. Num assunto aparentemente inócuo, uma frase minha mais descuidada (depois de ouvir uma barbaridade), logo me valeu a acusação “Nazi-Fascista”. De certa forma, explodi: “Queres que te parta a cara?”

Só me dá vontade de perguntar: MAS QUE MERDA É ESTA!? Sempre respeitei a liberdade dos outros, sem nunca impor ideias. Vou participar num espectáculo comemorativo do 25 de Abril, com música de José Afonso e Carlos Paredes, patrocinado por uma Câmara comunista. Todo o meu trabalho e dedicação e penso, para quê? Vou comemorar uma liberdade reclamada pelas pessoas que agora me estão a tirá-la.



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domingo, abril 04, 2004

Metabloguismo: questão de ódios


Venho constatando que a blogoesfera é um palco fértil para o florir de dois tipos de ódios. O anti-americano e o anti-benfiquista. São ódios que têm muito em comum, algumas funções terapêuticas, e uma forte base numa propriedade da linguística, que diz que uma frase bem esgalhada, daquelas que sabe bem ouvir, impõe-se a qualquer facto.

Estranho ou talvez não, é serem muitos dos críticos do anti-americanismo possuidores, por sua vez, do vírus anti-benfiquista. Como podem estes querer que os outros aprendam alguma coisa se eles mesmos apresentam a mesma recusa e fingem não olhar para os seus telhados de vidro?

Será que o ser humano fica mais completo se tiver um “odiozinho” de estimação? Digam-me se assim for, para eu arranjar alguma coisa para começar a odiar.



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quinta-feira, abril 01, 2004

Arte e ciência não são irmãs


Sempre achei que a arte e a ciência são duas formas de utilizar a imaginação e, por isso, deviam ter tido uma origem comum. Com a crescente especialização, deixou de ser possível a alguém poder dedicar-se às duas de forma empenhada, como no caso de Leonardo da Vinci. Mais estranho ainda, os dois campos começaram antagonizar-se, pelo menos no que diz respeito a um certo imaginário popular.

Como estou com uma dor de cabeça, comecei a pensar no que fariam os primeiros homens para lutar contra ela, sem quaisquer medicamentos. E cheguei à hipótese de que a ciência tinha nascido da dor e do desespero para a tentar fazer parar. Claro que se pode argumentar que tudo adviria, pelo contrário, de uma tendência natural de melhorar as condições de vida, criando melhores habitações, ferramentas, armas, protecções, etc. Mas acho que isto não é o suficiente para dar origem a algo tão poderoso como a ciência. E a minha proposta é que tudo veio da luta desesperada contra a dor, tanto nossa como de alguém que amamos em bruto.


Essa luta pode ter começado apenas com umas lambidelas no local magoado, depois exercendo pressões com os dedos. Mas quando o que dói é por dentro, o que fazer? Engolir algumas ervas deu resultado. E se deu, que tal experimentar mastigar essas ervas e colocar sobre uma ferida. Mas há perigo. Porque há coisas que curam e outras que matam. E outras curam e matam, dependendo da dose. Gerir isto implica raciocinar, utilizar alguma lógica elementar, classificar, decidir, escolher, ponderar, arriscar e ter rigor. E depois, este saber essencial não se pode perder, há que transmiti-lo. E fica a invenção de alguma memória colectiva. Tudo isto permitiu criar um tipo de intelecto mais desenvolvido, que depois se poderia aplicar a quase tudo.

E como terá nascido a arte? Parece-me que a raiz terá sido diferente. A minha segunda hipótese diz que nasceu dos estados de espírito. Da alegria, do sofrimento psicológico, da revolta, da raiva, do espanto, do medo – mas será que nasceu de uma dor de cabeça, de um pé partido, de um braço estilhaçado? Acho que não. Só mais recentemente a arte pode ter invadido estes domínios. A arte fluirá de forma distinta. Se a ciência nasceu para resolver algo, pelo menos de início (em certa altura a ciência passou a ser uma forma de satisfazer a curiosidade sobre o mundo, independente de servir para alguma coisa), já a arte não tem qualquer objectivo a não ser a expressão de um estado de espírito (e agora de servir de terapia a alguns jovens).

Talvez hoje em dia arte e ciência tenham convergido. A suas tremendas evoluções fazem com se tenha de adquirir uma base prévia, que é a técnica. O pianista antes de ser intérprete passou anos com exercícios, repetindo-os vezes sem conta. O compositor antes de escrever a sua sinfonia também teve de aprender toda a teoria e as técnicas de composição. Da mesma forma, o cientista antes de se envolver na descoberta dos mistérios da natureza passou anos apreendendo várias técnicas de suporte. De certa forma, arte e ciência perderam a sua naturalidade, passaram a ser processos demasiado mentais, pouco expontâneos. Talvez por isso haja sempre a necessidade da fuga para a frente, de descobrir algo de novo, de inovar, de revolucionar.



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