quinta-feira, janeiro 26, 2006

O saber tornou-se redundante

Os sistemas sociais eram, até há pouco tempo, baseado em classes tendencialmente rígidas. Em alguns lugares, a linguagem das classes superiores não era compreendida pelas classes inferiores e vice-versa. Reduzida era a diferença no estatuto de um servo e de um animal de carga. Foram os processos económicos que permitiram romper com este sistema de classes. Transformações lentas, que criaram novas classes intermédias, sem limites rígidos, não eram uma promessa de liberdade fácil mas apenas de possível luz ao fundo do túnel. O desenvolvimento possibilitou que nas sociedades mais evoluídas as diferenças fossem de nível e não de grau. Os realmente ricos podem ter outro tipo de carros, casas e férias. Os “normais” podem ter exactamente as mesmas coisas mas de um nível inferior.

Contudo, a nível cultural o esbatimento de classes não ocorreu com a mesma velocidade. A cultura era algo misterioso e só alguns lhe poderiam ter acesso. Um elevado estatuto económico não tinha uma grande correlação com o nível cultural (aqui cultura entendida no seu sentido estrito). O nível cultural era fruto de empenho e curiosidade pessoais, acesso a meios de saber (muito dependentes do local onde cada um se encontrava) e sorte em encontrar as pessoas certas que permitiam uma adequada introdução ao mundo do conhecimento.

Este cenário passou a ser irrelevante. É impossível alguém conseguir surpreender com os seus conhecimentos quando qualquer um pode, em poucos segundos, procurar o que quiser num motor de busca. E não são apenas conhecimentos genéricos e superficiais que se podem obter, que se desmascaram facilmente na presença de alguém mais entendido. Estamos numa época em que milhões de pessoas estão empenhadas em acções de auto-aprendizagem por motivos lúdicos ou profissionais. É uma forma de tomar as rédeas do presente e do futuro com consequências imprevisíveis mas que depois de concretizadas nos levarão a achar inacreditável o modelo social existente antes desta grande revolução silenciosa.

O que poderá marcar a diferença? Não será o conhecimento nem a inteligência nem, talvez, a capacidade para fazer acontecer. Será, antes, o poder de estimular um grupo de pessoas, próximas ou a grande distância física, que queira interagir connosco.


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quinta-feira, janeiro 19, 2006

O moralista viciado

Sempre me causou repugnância a personagem do falso moralista e a sua hipocrisia. Mas recentemente comecei a pensar se não haveria casos em que não se tratasse de hipocrisia mas de algo mais subtil.

O conceito de “valor”, entendido aqui no sentido ético ou moral, tem uma carga emocional que serve de máscara a todas as ideias que se lhe associem. Há substâncias químicas que provocam ilusões de invencibilidade ou de poder voar. O moralista, por seu lado, tem a ilusão de estar sempre certo. Para ele, a lógica não pode sobrepor-se aos valores. Mais que isso, a lógica, em caso algum, conseguirá desmontar as ideias que ele associa aos seus valores.

Há uma confusão que leva à criação deste labirinto. Os valores, por si só, estão para além do certo ou do errado. Desse ponto de vista, a lógica não os pode desmontar. Contudo, as ideias que se lhe associam podem e devem ser avaliadas com um espírito crítico. O erro do moralista viciado é não perceber isto. Para ele, quem critica as suas ideias apenas mostra o desprezo pelos valores. Por exemplo, se alguém critica as suas ideias sobre a segurança social, para ele isso significa que aquela pessoa é contra o valor da solidariedade. Não avalia as ideias diversas em termos de méritos ou deméritos, porque à partida elas não merecem crédito por não terem “valor”.

Esta concepção dogmática enraíza-se facilmente no espírito humano, mesmo entre pessoas de elevada craveira intelectual. O constrangimento emocional evita que se questione todo o processo. Mais que isso, reforço o sentimento de se estar certo e os outros errados. Desta forma, é possível partilhar dos mesmos valores que o moralista (e até ter com ele uma amizade) mas discordar profundamente das suas ideias.

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segunda-feira, janeiro 16, 2006

Fuga para a realidade

Não deixo de ficar chocado com a quantidade de animais mortos nas estradas. Nunca me aconteceu matar um animal ao volante e penso que um dia tal poderá ser inevitável. Contudo, por vezes penso que boa parte dos animais mortos podia ter sido evitada se os condutores não tivessem tanta alienação à flor da pele.

Há duas coisas que me fazem sentir uma separação enorme do meu semelhante. Por um lado, são as opiniões políticas, quando o intelecto justifica todo o ódio e irracionalidade em nome de um valor que me escapa, porque não o vejo concretizar-se e, não raras vezes, vejo o seu oposto materializar-se. Mas também conduzir na estrada, onde imagino boa parte dos condutores como meros assassinos.

As ideias de um amor universal e de uma visão não dual, onde não nos sentimos separados daquilo que nos rodeia, parecem-me cada vez mais extraordinárias por se afastarem tanto do que nos dita o senso comum. O amor aos que nos estão mais próximos ainda reforça mais a sensação de termos de nos proteger face aos que não estão tão próximos.

Mas as relações sociais têm alcances insuspeitáveis à primeira vista. Retirando todos os indesejáveis da nossa frente era bem possível que muito do que gostamos de desfrutar também desaparecesse. O único retiro verdadeiro a que temos acesso encontra-se no silêncio da imobilidade.

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terça-feira, janeiro 10, 2006

Fragilidades

Numa sociedade doente a fé resiste aos factos mas estes não resistem às opiniões. Felizmente, estamos muito longe deste panorama.

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quarta-feira, janeiro 04, 2006

Quando o Mal sabe bem

É impressionante a crueldade das crianças, que arrancam pernas às baratas, engolem formigas ou fazem sofrer outras criancinhas apenas pelo prazer que lhes dá. Será a maldade natural no ser humano? Penso que a natureza humana não é má nem boa. As crianças vão descobrindo as variáveis do universo aos poucos. Primeiro existem as variáveis que coordenam a sobrevivência, chorar para pedir comida ou para indicar sofrimento, procurar a mama da mãe, sorrir para criar uma ligação emocional aos pais. Depois vem a descoberta das varáveis exploratórias, a texturas dos brinquedos, a sua cor, o movimento. Na fase seguinte os brinquedos mais engraçados são os orgânicos e com vida, puxar o rabo ao gato ou os bigodes ao avô não significam uma apetência para o mal. Simplesmente a criança acha piada por obter reacções diferenciadas e mais ricas que as anteriores.

Só mais tarde a criança começa a ter noção que existem coisas que ela não experimenta directamente e que apenas pode inferir por alguns sinais. A dor e o sofrimento que a criança inflige no início eram puras e sem um objectivo para além da vontade imediata de obter alguma reacção, agora passam a ter um significado ético. E é aqui que o mal começa.

A génese do mal é a negação da empatia. É ter meios para perceber a dor e o sofrimento alheios e mesmo assim continuar as acções que os provocam. Posteriormente, o mal está em não se empatizar com quem sofre, seja porque razão for. Dir-se-ia que, deste ponto de vista, algum mal é necessário para prosseguirmos a nossa vida sem ela ser um martírio constante. Contudo, o extremo do mal acontece quando é justificado intelectualmente, sendo o paroxismo quando é dogmaticamente defendido pela ideologia. Defender o mal, só por si, nunca resultou. Quem defende o mal integra isso num contexto mais amplo. O mal é a forma de eliminar quem corrompe e impede o paraíso na Terra. O mal, portanto, é justificado como uma forma de arrancar as ervas daninhas para as verdadeiras flores poderem desabrochar.

O mal absoluto não está no indivíduo que mata alguém apenas porque ele passou à sua frente Isso é loucura, desespero, alienação, não o mal. O mal absoluto está no terrorista que mata porque acha as vítimas corruptas e que as suas acções são aprovadas por Deus. O mal absoluto está nas ideologias nazi, fascista e comunista que matam, censuram e segregam e acham as suas vítimas perigosas, culpadas de todos os males, inferiores e sem valor.

Nas sociedades ocidentais, semi-livres, o mal em grande escala está no relativismo. O relativismo que fecha os olhos aos crimes mais hediondos dos regimes islâmicos e comunistas, os primeiros justificados com o multiculturalismo e os segundos pelas boas intenções que a ideologia comunista diz ter. O mesmo relativismo faz as sociedades ocidentais andarem a expiar os seus pecados históricos ao mesmo tempo que ainda apresentam algum orgulho imperial. O relativismo que compara Bush a Hitler, que compara maus tratos numa prisão aos campos de concentração. O relativismo ocidental é essencialmente niilista. Não lhes interessa o fim do mal, pelo contrário, interessa-lhe desculpar o mal absoluto com males menores.

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