terça-feira, fevereiro 27, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (V)

Nada melhor para avaliar o futuro do que olhar para aqueles que o irão habitar, jovens, adolescentes, crianças e aqueles ainda por nascer. É frequente a questão: «Que mundo vamos deixar aos nossos filhos?» A pergunta não é tão relevante quanto isso, parece-me, sendo mais fundamental colocar em dúvida se os jovens de hoje estão a ser devidamente preparados para o futuro. E uma das características do futuro é a sua imprevisibilidade, cuja humanidade tem lidado, contrariando ou aproveitando, com a inteligência, capacidade de adaptação e criação de instituições que não mudam ao sabor do vento.

A atitude genérica dos pais em relação aos seus filhos tem muito pouca atenção ao futuro. Nas sociedades desenvolvidas actuais, uma criança que hoje entre no sistema de ensino tem elevadas probabilidades de sair de lá já com um diploma universitário. Até lá os pais vão-se esforçando para eliminar da vida dos filhos toda e qualquer dificuldade e, desta forma, acham que cumprem escrupulosamente os seus deveres parentais. Tendo em conta que actualmente há muitos licenciados que não passam de semianalfabetos, os pais que levam os seus deveres a sério deveriam estar um pouco mais atentos.

Acautelar o futuro dos filhos não é fácil nem nunca foi. Mas hoje há a perigosa ilusão de se ter descoberto a via do sucesso: facilitar, estimular a criatividade, derrubar barreiras, quebrar regras. Não faltam especialistas a alertar que qualquer reprimenda a uma criança é uma autêntica tortura. Portanto, se os pais não podem dar o mínimo castigo a uma criança birrenta e insuportável, o que fazer em opção? A resposta é óbvia, o suborno. Ainda os bebés não sabem falar e já dominam com mestria a técnica da chantagem, com a qual se tornarão reis e senhores do domicílio. Antes de entrarem para o ensino primário a maior parte das crianças já terá recebido mais presentes que os seus pais, avós, tios, etc. todos juntos nas suas vidas. Boa parte do tempo dos pais será dedicado a gravar DVD de animação e músicas infantis para os filhos. Irão multiplicar-se em iniciativas para não deixar que nada falte à criança. Questionados se não será excessivo dirão: «Quando fores pai logo saberás.» É curioso que pessoas que não tiveram 5 minutos do seu tempo para fortalecer o carácter dos seus filhos achem que merecem ser chamados de pais.
Após a entrada para a escola, a única preocupação dos pais é que os filhos carimbem com sucesso cada etapa. Aprender? Para quê? Eles sabem pela sua experiência que o saber não tem importância, o importante são os títulos. Os professores que lhes falam de indisciplina ou mesmo violência, para além de estarem obviamente a mentir, estão a atrapalhar o percurso escolar dos seus filhos, por isso há que ignorá-los, confrontá-los ou, à falta de melhor, ameaçá-los.
Até que ponto jovens como estes estão preparados para o futuro? Ignorantes, egocêntricos, sem vontade de aprender, sem capacidade de reagir à adversidade, sem valores, sem respeito pelos outros e pelas instituições? Relembrando o post anterior, serão estas as pessoas a ter de suportar o Estado Social que cuidará dos seus pais. E que viverão numa Europa que terá quase seguramente regredido em relação a todas as outras partes do mundo e que não terá quase nada a oferecer a não ser algumas ruínas históricas.

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terça-feira, fevereiro 20, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (IV)

Carlo (“Charles”) Ponzi ficou conhecido por ter posto em prática, em 1919 nos Estados unidos, um esquema de fraude que passou a ser conhecido pelo seu nome (“Ponzi Scheme”). Não se tratou de uma inovação mas foi o primeiro a elaborá-lo em larga escala. A promessa de altos rendimentos num curto espaço de tempo sobre o dinheiro investido, sem qualquer esforço, foi sempre uma tentação para muitos. A sustentabilidade do sistema dá-se pela entrada de novos investidores mas também pela permanência dos antigos que se mantêm. Quem dirige o esquema tenta gerir expectativas, apresentando aos investidores registos que mostram os seus rendimentos sempre crescentes. Em Portugal tivemos um exemplo deste esquema com a Dona Branca.

Os esquemas de pirâmide são aparentados aos “Ponzi Scheme” mas são bastante mais frágeis porque cada investidor tem, por sua vez, que recrutar mais investidores, o que pede um crescimento exponencial de participantes. Contudo, em ambos os casos o colapso é inevitável porque o processo não gera por si mesmo qualquer riqueza. Tudo isto estaria apenas no domínio da criminologia ou das curiosidades se a Segurança Social não tivesse alguns elementos de “Ponzi Scheme”. A maior parte dos sistemas de segurança social não se baseia nem na poupança nem na capitalização mas nas contribuições coercivas dos elementos que vão progressivamente fazendo dele parte (PAYGO – “Pay as you go”). Mas só isto não chega para declarar a Segurança Social uma fraude.

O indício do suicido civilizacional está na falta de seriedade com que se abordou o conceito de Segurança Social durante muito tempo. Vejamos o caso português em concreto. Durante décadas responsáveis políticos de todos os quadrantes garantiram a sustentabilidade do modelo social e as poucas vozes que alertavam para alguns perigos eram ignoradas quando não ridicularizadas. O sistema foi criando direitos adquiridos sem ter em atenção a possibilidade de os realizar, permitiu reformas antecipadas em larga escala, ignorou largamente as carreiras contributivas e conferiu privilégios absolutamente escandalosos. Reunindo isto temos uma clara falta de sustentabilidade, pelo que as semelhanças com o “Ponzi Scheme” avolumam-se, com a agravante da aderência à Segurança Social ser obrigatória.

Há ainda quem argumente que os sistemas de Segurança Social são transparente quanto às suas intenções e quanto aos seus meios, ao contrário do “Ponzi Scheme” que esconde o seu propósito e o seu método até quando lhe for possível. Mas no caso português, acompanhado por vários outros, nem isso é bem verdade. Só recentemente começou a existir uma maior consciência que a Segurança Social funciona tipo PAYGO, já que antes a maior parte das pessoas achava mesmo existir uma poupança efectiva (o termo “segurança” é bem enganador). As alterações do modelo de Segurança Social anunciadas pelo governo de Sócrates no fundo já admitem implicitamente a cada vez maior semelhança que o sistema vinha a ter com um “Ponzi Scheme”. O objectivo é aumentar a sustentabilidade, aumentando a idade de reforma, que também passa a estar relacionada com o crecimento económico. Alguns países, como a Suécia, foram um pouco mais longe e já incluem contas pessoais de investimento.

A forma como se encaram estas situações indica qual é a vontade existente para a preservação do futuro da civilização. A comparação do “Ponzi Scheme” com a Segurança Social nem precisa ser completa. O engano trapaceiro do “Ponzi Scheme” é substituído até com maior eficácia pela coercividade da Segurança Social. O “Ponzi Scheme” está sempre condenado ao fracasso, a Segurança Social não, desde que acauteladas algumas condições. Mas mesmo neste caso não há um consenso. Uma solidariedade que depende da coerção não tem grande valia, já diziam os antigos. Pior que isso, é um fardo que se lança sobre gerações que ainda não nasceram. E mais uma ironia, numa altura em que se considera, e muito bem, de um péssimo gosto argumentar contra o aborto por motivos demográficos, são feitos inúmeros apelos à maior reprodução da populaça. Não há, no fundo, qualquer contradição porque as motivações não estão nos princípios mas na prossecução de objectivos egoístas.

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quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (III)

A evolução demográfica pode ser uma das principais ameaças civilizacionais. O excesso ou o défice populacional quebram um equilíbrio e isso tem as suas consequências. O aumento da população é normalmente visto como a maior ameaça, trazendo vaticínios do esgotamento de recursos que conduziriam a um inevitável holocausto. O número da actual população do planeta iria espantar muitos teóricos há umas décadas atrás, influenciados pelas ideias malthusianas. Mas há muito que as ideias de Malthus foram rebatidas, por não consideraram a possibilidade do desenvolvimento económico e de poder utilizar os mesmos recursos de forma mais eficaz. A discussão não tem apenas estes vectores mas não vai avançar, por ora.

Falando em declínio civilizacional, o tema da série, a redução da população é algo bem mais ameaçador. Uma civilização que cresce demasiado pode enfrentar uma catástrofe mas uma que regride no número da sua população é porque desistiu de continuar. Penso ser um mito os casais terem actualmente menos filhos por egoísmo. Em alguns casos assim será, mas o principal motivo é, precisamente, a falta de motivação. Aprenderam as pessoas a enganar a natureza, conseguindo ficar com o prazer sexual mas sem o fardo da reprodução? Parece lógico pensar assim mas isso é esquecer que o instinto reprodutivo vai para além do sexo. Além disso, a esmagadora maioria das pessoas que opta por adiar a maternidade/paternidade não foi para fazerem algo de grandioso. Continuam presos a uma vida sem objectivos, sem chama, sem interesse. Na realidade este adiamento da função reprodutiva deve-se precisamente a estas razões. O que não faltam são pessoas com vidas preenchidas, que realizaram grande obras mas nem por isso deixaram de ser pais e mães.
Apresentado este contexto, como encarar o referendo ao aborto e os seus resultados? Inicialmente estava previsto escrever que se tratou de uma mera oficialização do direito ao egoísmo. Mas substituiria agora «egoísmo» por «alienação». O referendo não muda nada de substancial em termos civilizacionais. Existia já uma aceitação quase universal da inevitabilidade do aborto. Mesmo aqueles que vêm o acto abortivo como um crime bárbaro não conseguiram, nos últimos anos, lançar uma única iniciativa relevante para o seu combate. E na verdade, não há nada que se possa fazer, excepto atender alguns casos pontuais. Ninguém pode incutir noutro ser humano o dom da empatia.


Onde este referendo em particular denota um sintoma do apelo ao suicídio civilizacional não é na despenalização do aborto. Isso é uma mera formalização do que já era prática comum. Nem sequer está numa contabilidade que se possa fazer, entre a baixa taxa de natalidade e como ela poderia ser combatida através da redução do número de abortos. Isso são abstracções sobre dados agregados que nada têm a ver com o fenómeno particular e íntimo do aborto. O indício do suicídio civilizacional está, antes, na aceitação generalizada e quase sem contrariedade do financiamento do aborto pelos impostos de todos. Desta forma aceita-se que o acto abortivo passa a ser uma responsabilidade comum, que ninguém sente, e não de quem de facto cometeu os actos que levaram àquela situação. Isto é ir muito além de uma simples despenalização. É, antes, deixar de reconhecer que o aborto é um dilema moral. Pedir a despenalização do aborto, por razões pragmáticas relacionadas com a saúde pública ou por considerar que o direito de escolha da mulher é o valor mais importante em causa, não implicaria a criação de um novo direito. Mas foi isso o que aconteceu. O que é realmente preocupante foi a facilidade com que se ultrapassou esta barreira. E é isto que faz temer que não hajam quaisquer outras barreiras que não sejam transponíveis e, para cúmulo, serem ainda vistas como avanços civilizacionais.

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terça-feira, fevereiro 06, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (II)

ATAQUE À SEGURANÇA E À DEFESA

Seria cómodo pegar no post anterior, que descreve em abstracto uma situação de degradação civilizacional em vários planos, e traçar um paralelo com a nossa própria civilização, em especial no que concerne à Europa ocidental. Apesar de me parecer óbvio que a Europa está efectivamente em declínio acentuado nos planos militar, social e espiritual, é ainda cedo para dizer que desistiu. Há várias forças em confronto e esta disputa ocorre de várias formas, a maior parte delas passando despercebida. As mesmas pessoas podem defender ideias contraditórias. Isto não revela nada de extraordinário, as nossas acções têm frequentemente consequências não desejadas. Só alguns de nós têm tempo, disposição e, diria mesmo, a disciplina férrea indispensável para conseguir analisar com alguma lucidez os efeitos das ideias que defendemos.

Que evidências temos de que a civilização ocidental europeia começa a encaixar-se no modelo em declínio descrito anteriormente? Vejamos o plano militar. A União Europeia não tem exército único e mostra uma capacidade pouco mais que nula para intervir em qualquer situação de confronto. Esta debilidade tem sido astutamente mascarada com as frequentes acusações aos Estados Unidos, mais ao menos fundadas, de belicismo, imperialismo, entre outras. Mas vamos supor que os Estados Unidos se retiravam da NATO e recusavam intervir fora das suas fronteiras em que quaisquer circunstâncias. É muito cómodo ter uma postura pacifista quando se vive numa situação de segurança (terrorismo à parte, é uma situação a ver de seguida) e se sabe que nenhum país terá o desplante em nos declarar guerra. Mas sem o “guarda-chuva americano” esta sensação de segurança ir-se-ia esfumar num instante, as fragilidades europeias ir-se-iam tornar evidentes, não só em relação ao exterior mas também em termos internos, com questões de nacionalismos emergentes, secessões e com os provável reacender de rivalidades centenárias entre nações do velho continente, que já nos deram duas guerras mundiais.

Mas a segurança tem dois planos, o externo, onde podem intervir os militares, e o interno, nos países ocidentais tendencialmente plano de acção de forças civis, cada vez mais com empresas de segurança que não se constituem autoridades. O terrorismo toca ambas as áreas, especialmente se quisermos ter uma atitude activa no seu combate isso poderá implicar a utilização de forças militares contra estados pária. Bem sabemos que não são decisões consensuais, pelo contrário, suscitam uma grande oposição pública e envolvem muitos custos, incluindo o de vidas humanas, além de terem resultados incertos num complexo contexto internacional. No entanto, uma Europa sem capacidade militar não terá esta forma de combate ao terrorismo, mesmo se chegasse à conclusão que se tinha tornado imprescindível. Há relatos de que mesmo os diplomatas franceses à porta fechada concedem, com naturalidade, que os americanos intervenham militarmente em qualquer situação de crise, apesar de posteriormente os virem criticar veementemente em público por isso.

O terrorismo não constitui o melhor exemplo para avaliar as debilidades europeias fundamentais em termos de segurança interna. Talvez por a Europa ainda ter alguns focos de terrorismo, com a ETA e o IRA, além de ter uma memória fresca relativamente a outros grupos, como as Brigadas Vermelhas, as FP-25 (de Abril) ou o Baden Meinhoff, a atitude interna ao seu combate parece ser bastante mais séria e coerente comparando com a que revela na sua política externa. As debilidades da segurança interna prendem-se mais com delitos comuns e a cada vez menor consideração pelas vítimas.

Convém, antes de mais, contextualizar. Até há poucas décadas atrás algumas prisões europeias, mesmo em países democráticos, tinham condições desumanas e condenações prolongadas significavam quase penas de morte. Temos também que apenas há cerca de três décadas países como Portugal, Espanha e Grécia libertaram-se de ditaduras, regimes que dificilmente podem dar garantias de isenção dos tribunais e de separação de poderes. Por isso, o incremento de garantias para presumíveis autores de crimes e o estabelecimento de condições mínimas para encarceramento é inegavelmente uma conquista civilizacional.

Mas ao mesmo tempo que se deu esta evolução humanista foi ocorrendo outro processo de influência que se pretendeu colar à primeira mas foi bastante mais além. A evolução humanista baseia-se em algumas ideias simples, que qualquer suspeito de crime ou delito tem direito a um julgamento imparcial e, se condenado, a pena deve estar em conformidade com a infracção, que esta será aplicada com o mínimo respeito pela condição humana. Note-se que em nenhuma circunstância se tenta desresponsabilizar quem infringiu a lei. O processo que decorreu em paralelo pegou neste ponto, tentou passar a ideia de que não existe uma distinção clara entre criminoso e vítima . Claro que em algumas situações assim é, mas tratam-se de casos muito particulares e fazer disto a regra é simplesmente abominável.

Mais que isso, tentou passar-se a ideia, e com bastante sucesso, de que não há responsáveis individuais, todos somos responsáveis, a culpa é da sociedade, das suas injustiças, das desigualdades. Longe de ser humanista, esta ideia é profundamente ofensiva para os mais desfavorecidos, porque os considera a todos potenciais criminosos. A isto junta-se um complexo colonialista que leva também à justificação, quando não omissão, de crimes cometidos por certas etnias.

Não vou discorrer sobre os efeitos que estas ideias «progressistas» tiveram sobre a legislação, por ser área de que pouco sei. Mas são evidentes os seus efeitos em termos sociais. O conceito de autoridade foi completamente desvalorizado e as pressões mediáticas vão no sentido de desculpar a maior parte dos crimes. Investir em segurança deixou de ser uma prioridade. Claro que pontualmente vão aparecendo «casos que deixam o país em estado de choque», e aí todos se insurgem contra o estado de coisas, mas são fogos-fátuos que se extinguem rapidamente. As pessoas vão adaptando-se à insegurança crescente, esperando em vão por algumas palavras de esperança dos políticos. Da esquerda não as ouvem porque este campo não é sua prioridade. A direita também se cala para não ser comparada com a extrema-direita. E são precisamente estes radicais que aproveitam a lacuna que mais ninguém quer preencher e vão subindo consistentemente nas votações por essa Europa fora, porque supostamente sabem ouvir os apelos do cidadão comum e estão atentos às suas necessidades. É esta uma das muitas ironias da Europa, as políticas mais radicais da esquerda abriram caminho para os mais radicais da direita.
No próximo post analisarei o plano social, onde também abordarei a questão do aborto. Inicialmente estava previsto fazê-lo ainda antes do referendo mas sem a ideia de tomar posição no mesmo porque o âmbito de análise é bastante distinto. Como o post só será publicado na próxima terça-feira, depois de conhecidos os resultados, será mais fácil aceitar que não se trata de mais uma acção de campanha.

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