quarta-feira, março 28, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (IX)

O BEM

Em crianças ensinaram-nos o que era o bem e o mal. Evitar o mal era a nossa protecção e afastava-nos do perigo. Mais tarde, na adolescência, na universidade, na vida adulta surgiram as novas fontes que nos desmentem a validade dos primeiros ensinamentos. O bem e o mal não existem, são coisas inventadas para nos provocar terror e nos incutir um sentimento de culpa, que nos castra socialmente e na nossa intimidade de modo a manter o poder dos padres, que surgem como salvadores dos papões que eles mesmo inventaram.

Assim formou-se uma sociedade de indivíduos com visceral aversão ao religioso, ao tradicional e ao conservador. Quando se tornam pais já nada têm para ensinar aos seus filhos. Tentam compensar a rejeição dos ensinamentos pretéritos com a adesão às novidades salvadoras. Seguem de forma pueril todas as indicações dos especialistas para uma vida saudável, para um correcto desenvolvimento psico-cognitivo dos filhos, para poupar 5 euros por ano em electricidade seguindo uma disciplina férrea em relação aos interruptores (na gíria técnica diz-se que “não custa nada”).

Uma vivência assim é resultado do declínio espiritual porque os indivíduos perderam qualquer noção de bem e de mal. O que antes era “o bem” deu lugar a uma tentativa de aceitar friamente as conclusões racionais das disciplinas do conhecimento humano como orientador principal. Note-se que o problema não está em aceitar a racionalidade mas em não perceber as suas limitações.

Aquilo que se chamava “o bem” tratava-se em grande parte de um conjunto de hábitos, comportamentos, ideias e rituais que resultaram de um longo processo de triagem civilizacional, cuja validade não foi decretada por ninguém mas descoberta através de miríades de pessoas que foram escolhendo o que consideravam ser as melhores opções para os seus problemas, com muitas tentativas e erros. A codificação das «melhores práticas» em códigos éticos e morais nunca é um processo feito de uma só vez. Mesmo as propostas surgidas de uma revelação religiosa tiveram os seus antecedentes culturais e só sobreviveram porque foram aceites e não impostas.

É um erro monumental pensar que a civilização ocidental vivia na obscuridade da irracionalidade religiosa até a chegada do iluminismo. Foi esse mesmo iluminismo que deu um impulso monumental a disparates como a astrologia. A religião não impediu a criação literária, arquitectónica, musical e até, pasme-se, o nascimento da ciência. Fazem passar constantemente a imagem oposta que nos custa a crer que é assim. Lembram-nos constantemente dos passos em falso da Igreja e esquecem quando foram os padres a impulsionar o saber e as artes. Passamos a acreditar que a religião e a tradição nada tinham de bom a oferecer e, sendo assim, “o bem” teria de vir de outras paragens.

Mas o que acontece se tivermos que substituir todo o legado religioso e tradicional? O antigo “bem” pode traduzir-se numa palavra: «confiança». Essa confiança resulta de uma conjunto mínimo de soluções para os aspectos fundamentais da vida, a que o homem tem acesso. Pode implicar esforço e sacrifícios, mas o exemplo de incontáveis homens que já seguiram os mesmos passos e triunfaram inspira confiança e, até mesmo, um certo sentido de transcendência.
Hoje em dia as queixas mais frequentes são sobre o stress e o mundo que muda cada vez mais rápido. O curioso é que a maior parte das pessoas que apresentam estas queixas tem uma noção muito reduzida das mudanças que o mundo sofre e vivem quase sempre num contexto de reduzida incerteza, ao ponto de se meterem em encargos que irão durar décadas. O que estas pessoas se queixam na realidade não é do que se altera mas do que deixou de ser permanente. Não é a pressão que os assusta mas o não terem armas para lidar com ela. É a sensação de serem sempre apanhados desprevenidos, dos seus problemas serem demasiados específicos e ainda não terem solução. Não só perderam a confiança em si mesmos como já nem sabem que é possível voltar a obtê-la, pelo que nem se apercebem que lhes falta confiança.

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quarta-feira, março 21, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (VIII)

A VERDADE


O que é a verdade? Uma pesquisa elementar revela uma vasta literatura sobre algo aparentemente tão simples. É um campo de vasta abordagem na filosofia, através da lógica, da metafísica e da epistemologia, onde nasceram várias teorias da verdade e onde filósofos famosos apresentaram as suas perspectivas. Também as religiões têm as suas concepções da verdade a tender para a transcendência. Ter uma abordagem assim difusa sobre a verdade é considerada uma experiência enriquecedora por muitos, que sentem ganhar uma consciência mais desperta sobre o que os rodeia e sobre a sua posição no mundo. Tudo isto está muito bem não fosse um pormenor. Quando se esquece a concepção de verdade mais elementar, falar das “outras verdades” é apenas uma espiral niilista.

A concepção elementar de verdade refere apenas a conformidade com os factos ou com a realidade, que Aristóteles também definiu de forma alternativa através do princípio da não contradição. Não que Aristóteles tenha criado algo completamente novo, muito antes dele já se agia de acordo com a definição de verdade que ele formalizou. Claro que as limitações da lógica aristotélica são chatas, não permitem todo o tipo de devaneios. Mas não limitam a criatividade e a intuição na produção da actividade artística de forma antinatural, como alguns querem fazer crer. A arte em si está em plena conformidade com a realidade, caso contrário seria apenas uma experiência intelectual e não uma realização viva. Ou seja, a arte em si está limitada ao possível e ao realizado.

Já as experiências puramente intelectuais tem como única limitação o concebível, ou seja, o que a mente conseguir criar. E aqui o papel da lógica aristotélica é essencial, definindo os domínios da objectividade e da validação de resultados. Este papel de triagem é por natureza restritivo. Quem almeja a consagração, o elogio, o reconhecimento do génio próprio, terá tendência para abraçar efusivamente as ideias que lhe permitem validar uma criatividade mais lata. As correntes filosóficas desenvolvidas no século XX, que tiveram em Kant um dos principais inspiradores, seguiram um caminho relativista que se presta a isso. Aquilo que a velha lógica aristotélica chamaria de “disparates sem qualquer fundamento”, é encarado pelas teorias modernistas como visões mais ricas e libertadores, inteiramente válidas.

O sucesso destas modas filosóficas, quase todas monumentais embustes intelectuais, terá várias explicações. A adesão a elas não se dá mediante o escrutínio da razão mas, antes, através da sensação de se estar a emergir num ritual iniciático. Ideias de algibeira apresentadas em linguagem propositadamente obscura provocam nos aderentes uma sensação de assombro por imaginarem que entraram num domínio especial que os faz pertencer a uma elite de notáveis. Tal como referiu Jean-François Revel, trata-se de um elitismo de massas, com inúmeros seguidores mundo fora. Certamente serão uma minoria que representa parte ínfima da população. Contudo, a sua capacidade de influência é inversamente proporcional ao seu peso demográfico e, mais grave, inversamente proporcional à qualidade das teorias que defendem.

Este poder de influência advém das funções que genericamente desempenham: professores universitários, jornalistas, comentadores de «referência», ideólogos de partidos, planificadores sociais de carreira, etc. São estas pessoas que nos mostram o que é a modernidade e até que ponto alcançava a nossa imbecilidade antes de sermos atingidos pela luz que deles emana. E se não nos rendemos às revelações que eles com tanto altruísmo nos oferecem, tal só pode constituir prova da nossa obtusa ignorância.

Aos poucos forma-se uma segunda linha de militantes anónimos, que nem se apercebem que já aderiram à causa, os chamados idiotas úteis, que já não têm o gozo iniciático dos primeiros uma vez que vieram beber a moda filosófica por osmose social e se limitam a ser peões na defesa da modernidade totalitária. O trabalho incansável que realizam já nada tem em vista, é por essência niilista. A ideologia que professam é o “já nada faz sentido” e o principal slogan “quero lá saber”. Vêm aqueles que se esforçam para atingir algum objectivo concreto como fúteis, materialistas ou iludidos. São depressivos profissionais que pretendem a todo o custo contagiar os que à sua volta se encontram.

Incrivelmente, são incapazes de reconhecer que o estado letárgico em que se encontram resultou do abraçar de teorias niilistas e auto-destrutivas. Preferem culpar a tradição, a sociedade ocidental, a religião, a racionalidade. Há toda uma vasta gama de pseudo-profissionais da saúde (ou profissionais da pseudo-saúde), psicanalistas, psicólogos e até alguns psiquiatras que confirmam a origem de todas as maleitas de que sofrem, é o stress, é o estilo de vida ocidental, é a tradição judaica-cristã, é a herança reaccionária do tempo dos pais e avós que lhes provocaram traumas indeléveis, etc. Essencialmente culpam tudo aquilo que renegaram e não lhe passa pela cabeça averiguar se as próprias escolhas dos indivíduos, derrotistas e alienadas, não tiveram qualquer contributo.

Apesar do povo ser infinitamente mais sábio que estas aberrações existenciais que nos tentam iluminar, a humildade faz com que tenham consideração pelos “doutores”. Se aqueles que são apresentados como sábios dizem que 2 mais 2 já não são 4, quem é o povo para discordar? O melhor que tem de fazer é adaptar-se aos tempos que correm, até porque uma das coisas que ouve com mais frequência é que o mundo está a mudar mais rapidamente que nunca. Poderá querer isto dizer outra coisa a não ser que o que era certo no passado inevitavelmente deve ser renegado o quanto antes?

Os “doutores” e a modernidade validam-se reciprocamente. A modernidade é válida porque o confirmam estes senhores. E estes senhores são autoridades precisamente por defenderem a modernidade. É a única noção de autoridade que ainda nos resta.

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terça-feira, março 13, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (VII)

Ainda antes de avaliar as falsas religiões alternativas, indiciadas no último post, faltam ver duas coisas. Falta abordar o papel edificador das religiões autênticas que, tenho de confessar, não posso assegurar sobre ele conseguir discernir de forma minimamente conveniente nos próximos tempos. Mas, ainda antes, resta também analisar em maior detalhe algumas consequências do declínio espiritual.

O declínio espiritual não provoca necessariamente um declínio geral. Pode até gerar um crescimento económico e uma fermentação social espantosas durante um determinado período de tempo. A razão é simples, confere maior liberdade. O declínio espiritual é sobretudo uma erosão da autoridade, que é sentida como liberdade. A liberdade que aqui se fala é a sensação de não haver limites para nada, no fundo a ideologia do terrorista. Ou seja, a sucessão de espasmos emocionais que ilude o indivíduo de estar cada vez mais perto da intocabilidade. O novo mundo que assim nasce baseia-se num crescente conferir de direitos que se baseiam numa lógica de não neutralidade. O paradigma é rejeitar o passado, a tradição, as instituições mais antigas e abraçar qualquer causa “moderna”. Ou seja, não é a liberdade de escolha mas a liberdade de censura sobre o passado.

A própria autoridade em si é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Alguns querem fazer crer que a erosão da autoridade é benéfica porque não é mais que um erradicar de um autoritarismo opressor. Acontece que é precisamente o contrário. O que está em causa é a própria liberdade de acreditar. Hoje em dia um crente dificilmente se pode manifestar em público. As suas crenças passam a ser como a sua sexualidade, ambas devem estar fora dos olhos da multidão. Mas aqueles que se regozijam de nos ter livrado desse terrível mal, segundo eles, que é a fé, apresentam por sua vez um cardápio de outras crenças disfarçadas de consensos científicos, políticos, médicos, etc. Estes novos evangelizadores não perdem muito tempo a tentar convencer-nos das suas “verdades”, são mais directos. Quando têm poder para isso simplesmente tentam proibir quem se atreve a levantar dúvidas. Por enquanto ainda utilizam como principal arma contra os cépticos o extermínio de carácter.

Este movimento rumo ao totalitarismo, que acontece dia após dia frente aos nossos olhos, só é possível porque uma das componentes da autoridade já deixou de fazer qualquer sentido para a maior parte das pessoas: o respeito pela verdade. Será o tema do próximo post.

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terça-feira, março 06, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (VI)

DECLÍNIO ESPIRITUAL

O declínio espiritual é, sem dúvida, a principal causa do suicídio civilizacional. A obliteração do plano espiritual, ao contrário do que se possa pensar, não conduz necessariamente a uma anarquia social, a um erradicar dos movimentos de grupo. Há uma tentativa imediata de ocupação do espaço vago através de várias propostas alternativas. Um terreno que deixa de ser cultivado não é naturalmente substituído pelas variantes mais nobres do mundo vegetal mas sim pelas ervas daninhas. Acontece o mesmo nas matérias espirituais, as religiões seculares são substituídas por esoterismos descabidos, por versões adulteradas de várias religiões, por um sincretismo difuso de diversas espiritualidades e por uma tentativa de realizar a “modernidade”, que se expressa de formas tão diferentes como o ateísmo militante, a ecologia dogmática, a militância pelas causas progressistas (sim ao aborto, não à pena de morte; sim às drogas duras, não ao tabaco; sim à homossexualidade, não à família; sim ao terrorismo, sim à eutanásia) e claro, o eterno marxismo puro e duro.

O florescimento destas “aberrações espirituais” é comummente explicado pelo descrédito das religiões tradicionais e pela maior liberdade das sociedades ocidentais. O que nos omitem é que o descrédito das religiões tradicionais, especialmente o cristianismo, em muito se deve a um esforço anticlerical nascido do iluminismo e que se infiltrou na própria igreja católica. Apesar destas “espiritualidades alternativas” usarem a liberdade para se afirmarem e ganhar relevância, os seus fins últimos são, sem excepção, instituir algum tipo de totalitarismo.

Algo que nos permite perceber que estas “espiritualidades alternativas” não surgem espontaneamente é olhar para as suas consequências e ver como se conjugam e complementam. Subjacente está a crítica ao homem branco, ao estilo de vida ocidental, ao capitalismo e ao cristianismo. Pode-se argumentar que isto é uma generalização excessiva. Pelo contrário, diria que não é válida apenas para os curiosos que entram nestes movimentos sem grande empenho e que não ficarão por lá muito tempo. Os que lá permanecem, mais tarde ou mais cedo convertem-se ao anticristo, ao antiamericanismo e ao anticapitalismo. Note-se que esta conversão nada tem a ver com as críticas fundadas que se possam fazer ao cristianismo, aos EUA ou ao capitalismo. É uma conversão que anula o sentido crítico, que institui o bem e o mal absolutos e tudo rege segundo esta classificação, sem uma sombra de dúvida. É fácil constatar que os fins últimos destes movimentos são os que referi e não os que proferem em viva voz quando vemos grupos de feministas apoiando regimes islâmicos que tratam as mulheres das formas mais aberrantes, mas também quando os grupos de “trabalho gay” tecem loas ao regime cubano, que manda prender qualquer homossexual. Em ambos os casos, o verdadeiro objectivo é fazer pirraça aos americanos e, por extensão, ao ocidente.

Se bem que a conversão seja um acto repentino, ela resulta quase sempre de incontáveis horas de exposição a propaganda mais ou menos dissimulada. A vulgata marxista, pura e dura, não provoca mais que sorrisos na maior parte das pessoas. Contudo, a essência da mensagem tem sido passada com bastante eficácia por vários movimentos. O renovar da linguagem e o espartilhar do conteúdo por múltiplas fontes torna difícil a identificação da unidade do movimento que nos conduz ao declínio espiritual. Contudo, são fáceis de identificar as seguintes mensagens um pouco por todo o lado:

- Os crimes das minorias étnicas devem ser desculpados devido ao passado colonialista e esclavagista dos europeus;

- O terrorismo islâmico é provocado pela pobreza e pela existência de Israel, ambas culpa do ocidente, em especial dos EUA;

- O vegetarianismo deve substituir o “fast-food”, aliás, todos os outros géneros de culinária;

- Os homossexuais são mais sensíveis e criativos que os heterossexuais;

- A mulher deve ser descriminada positivamente em relação ao homem;

- O capitalismo é auto-destrutivo e conduz a desigualdades sociais;

- O estilo de vida ocidental está a provocar graves alterações no planeta;

- A religiosidade é o oposto da modernidade, da criatividade e da razão;

- O cristianismo é inferior às religiões orientais;

Os próximos posts analisarão as razões destas ideias serem mais ou menos erradas, mas também questionarão os motivos para a sua contestação ser tão rara nos meios de comunicação tradicionais, no ensino e nas universidades.

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