Orgulhosamente sós (um post muito longo...)
Há épocas extraordinárias, em que civilizações se desenvolvem e paira uma energia criativa no ar que parece todos contagiar. Outros momentos há marcados por movimentações avassaladoras, guerras prolongadas, revoluções, ditaduras sangrentas, que também condicionam toda a vida de quem os assistiu. Fenómenos outros há que podem ser tão marcantes como estes, mas que se desenvolvem de forma quase imperceptível, que poucos ligam mas em que quase todos se encontram envolvidos. Suspeito que estes “movimentos lentos” só sejam marcantes porque são profundamente negativos. Receio bem estar em curso um destes movimentos – o da consolidação de uma Xenofobia Global (XG). Falo essencialmente do sentimento português, contudo irei estender-me a outras paragens quando tal se justifica.
Pequenos pormenores podem ser reveladores. Surpreende-me o número de pessoas que, em voz baixa, fala mal dos brasileiros. Ficam incomodadas por brasileiros servirem à mesa, apresentarem programas de rádio, abrirem consultórios. Mais surpreendente são as pessoas que dizem não ver os canais da TV cabo com documentários por serem falados em “brasileiro”. Apesar de gostarem dos documentários, não suportam aquela voz. De forma semelhante, muitos portugueses repugnam-se pela presença de espanhóis, apesar de não o darem a entender. Dizem que são brutos, falam alto, ou simplesmente não gostam deles.
Apesar de sempre terem existido estereótipos em relação a estes dois povos, especialmente os espanhóis, actualmente passa-se algo diferente. Começa a verificar-se uma aversão quase visceral. E quando os preconceitos se entranham no corpo pode-se ter chegado longe demais. Arranjam-se algumas explicações requintadas, tentando mostrar que esta repugnância é natural (?), por vezes com alguma acutilância, porque ninguém é perfeito. Mas essencialmente, o desconhecimento sobre os dois países que supostamente nos estão mais próximos é a regra. Ignora-se também o muito que podíamos aprender com eles (e eles connosco), porque penso que há alguma complementaridade entre nós e “eles”. Além disso, uma cooperação bem intencionada com brasileiros e espanhóis podia ser um bom impulso nos difíceis tempos que nos esperam. Mas ela só tem acontecido quando é forçada de “fora para dentro”.
Também o sentimento anti-americano tem o seu quê de xenófobo. Vou começar por separar as águas para depois talvez chegar à conclusão que tal pouco sentido faz. A invasão do Iraque seria sempre um ponto que levantaria celeuma. Trata-se de guerra, morrem pessoas, locais ficam destruídos, gera-se caos. Por mais boas intenções que se apregoem, da libertação do povo de um ditador sangrento, da luta contra o terrorismo, a guerra vista em directo torna mais fácil acreditar que tudo é em vão, que nada vai mudar ou que mudará para pior. Ainda por cima, sabemos que os estados se movem por interesses e possuindo o Iraque grandes reservas de petróleo, não é difícil fazer a associação. Por essa razão, a invasão do Iraque, por mais justa que fosse, criaria sempre grandes movimentações contra a Administração Bush.
Mas estas movimentações já existiam muito antes, mesmo antes do 11 de Setembro. Já existia a rotulamento de um presidente ignorante, burro, mal intencionado e que não olharia a meios para conseguir o que deseja. Para confirmar todas estas “verdades” temos um Moore, que diz aquilo que muitos querem ouvir e os deixa satisfeitos e sem necessidade de procurar mais argumentos. Porque, por mais incrível que pareça a alguns, é relativamente fácil hoje em dia a qualquer um averiguar se de facto as coisas se encaixam de forma tão perfeita como nos são apresentadas. Perdendo algum tempo, poderia tentar-se perceber se Bush é tão idiota como se quer fazer passar, para onde irá o petróleo do Iraque, o que aconteceu mesmo ao Museu de Bagdad, se os EUA de facto venderam a maior parte das armas que o Iraque dispõe, ou mesmo se o sistema constitucional americano permite a governação imperial que dizem existir.
Mas a troca de argumentos sobre a miríade de aspectos que constitui esta questão já foi discutida até à saturação (apesar de longe do grande público), e não me quero prender nela. O que quero salientar é que são muitas as pessoas contra os EUA mas pouquíssimas as que perdem tempo a averiguar essas mesmas certezas. Agora ia começar com a segunda parte (a mistura das águas) da “argumentação”. Se admitíssemos, por hipótese, que a actuação da Administração Bush foi desastrosa, isso seria motivo para não gostarmos da administração, apenas isso. Mas o que acontece actualmente é que isso é apenas um pretexto para condenar todos os norte-americanos.
Claramente, a maior parte das pessoas não gosta dos “americanos”. «Qualquer filme que mostre americanos a morrer eu gosto», disse-me um conhecido com um sorriso. Parece que se tornou politicamente correcto falar dessa “raça maldita”, aparentemente criada por geração expontânea, todos burros, militaristas e que apenas conseguiram trazer mal ao mundo. O 11 de Setembro teve várias consequências e uma delas foi a de que muitos expressassem o ódio que já tinham pelos EUA. Os ataques de 11 de Setembro foram vistos com alegria por muitos, que alguns tentaram esconder mas que outros não hesitaram em celebrar em público. Parece-me hoje óbvio que a solidariedade mostrada por todos após os ataques não passou de uma farsa. Mais estranho ainda foi a pouca importância dada à ameaça terrorista, apesar de se saber que ela não visava apenas os EUA mas todo o mundo. Limita-se a uma maior vigilância e pouco mais. Alegremente vamos sendo encaminhados para o forno crematório. Alegremente porque, aparentemente, os americanos serão os primeiros a serem torrados.
Mas mudemos de continente, e ficaremos na nossa Europa. Está embrionário o sentimento anti-europeu pelos próprios europeus. Um conjunto de factores causa auto-repulsa. Foram os europeus que criaram a I e a II Guerras Mundiais. Os EUA nunca seriam a potência que são sem estas brilhantes invenções. Foram os europeus que criaram as ideologias totalitárias (fascismo, nazismo, comunismo). O comunismo espalhou-se a leste, com as consequências que sabemos. Foram também os europeus os responsáveis pela colonização de inúmeros lugares espalhados pelo mundo, que com a inevitável descolonização criaram muitas oportunidades de conflitos para a Guerra Fria, e finalmente a uma data de repúblicas ingovernáveis e/ou dictatoriais. Os europeus, que se acham campeões dos direitos humanos, não fazem nada de útil para a resolução de conflitos. Quer por falta de coragem, quer por interesses estabelecidos, têm sempre uma actuação passiva face aos grandes problemas do mundo.
Na Europa, a França ocupa uma posição de destaque para atrair alguns ódios. Não é por serem os campeões do anti-americanismo que são bem vistos (as estatísticas mostram que os alemães ficam à frente). Ainda não faz parte do vocabulário o termo anti-francesismo, mas talvez pouco falte. Porque os líderes franceses, ao colocarem-se em bicos de pés e a chamarem a si o título de defensores principais dos direitos humanos, não são especialmente convincentes. Muitos não hesitam em denunciar a hipocrisia deste comportamento, quando os governos franceses nunca se coibiram de usar todos os meios à sua disponibilidade para a defesa dos seus interesses (incluindo intervenções militares e negociatas com os piores ditadores).
Ainda sobre a França paira a acusação de ser a maior responsável pela existência da Política Agrícola Comum, que não pode ser classificada de outra fora que não seja como um autêntico crime contra a humanidade (isto mereceria uma análise à parte, até porque existem outras PAC em outros continentes). A França também lidera, presumivelmente, a tentativa de elaboração de uma futura federação europeia, com uma configuração em que “os grandes” não possam perder poder e “os pequenos” tenham uma liberdade condicionada. Já temos suficiente dados históricos para saber que este modelo apenas conduz ao definhamento inevitável das economias, arrastando tudo o resto.
Mas, tal como acontece em relação aos EUA, o desagrado em relação às políticas dos governos franceses transforma-se muito rapidamente no desagrado em relação a todos os franceses. Junta-se tudo no mesmo tacho e sobre os franceses mesclam-se todo o tipo de críticas, tanto as que poderiam se atribuídas a alguns indivíduos como as que pretensamente identificam o povo pela negativa: porque os franceses são arrogantes, porque negoceiam com terroristas, mal agradecidos por não reconhecerem quem os salvou, arrogantes a ponto de ainda se acharem uma grande nação, pretensiosos, pouco chegados à água e ao sabonete. Como se estas classificações se ajustassem a todo e cada um gaulês...
Mas xenofobia também existem em relação aos muçulmanos. É curioso que muitas vozes tentem compreender as razões do terrorismo islâmico e até desculpá-lo, mas sobre o Islão propriamente dito muito poucos procurem saber algo, ficando-se por uns quantos estereótipos. Em alguns momentos chego a pensar que é maior o respeito pelo terrorismo islâmico do que pelo Islão moderado. Isto terá algum sentido, uma vez que respeito ainda é visto muito como medo, mesmo que inconscientemente.
Os portugueses desconhecem a sua herança árabe (nem todos os árabes são muçulmanos, nem todos os muçulmanos são árabes), e no muito que perdemos ao expulsá-la, tal como foi feito com os judeus. Foi o mundo islâmico que permitiu que não se perdesse muita da nossa herança grega. É certo que o Islão atravessa templos complicados, com muitos problemas por resolver. Mas não sejamos ingénuos de pensarmos 1,4 mil milhões de pessoas constituem um grupo uniforme. Nem todas as muçulmanas são obrigadas a usar véu (em alguns países gozam até de liberdades muito semelhantes às dos homens), e nem todos veneram imagens de ayatollas.
Na realidade, os ayatollas (líderes religiosos) só existem para os xiitas, que são apenas 10% dos muçulmanos. Para os sunitas, que completam quase 90% dos restantes muçulmanos, não existem líderes, nem imagens. Por vezes também se faz passar a imagem que todos os muçulmanos encetaram uma Jihad contra o ocidente. Mas ninguém se questiona a razão de Jihad significar guerra santa. Só é santa porque Jihad é, em primeiro lugar, a luta da pessoa consigo mesma para se tornar melhor. Infelizmente, várias passagens o Corão também podem ser interpretadas como incitando a uma guerra menos santa. Não há que esconder que o Islão esconde em si eventuais focos de perturbações graves, das quais o terrorismo é a mais preocupante. Mas, precisamente devido a este perigo, mais urgente se torna compreender o que está em causa e ser justo, porque só assim também se tem autoridade para ser duro. Contudo, o xenofobismo conduz exactamente ao contrário, em que se é duro para os muçulmanos em geral mas bastante passivo para a minoria que escolheu o terror.
Em relação aos judeus, a xenofobia quase remonta ao “início dos tempos”. Quase que se pode dizer que os judeus são o bode expiatório da humanidade. Portugal era um dos poucos países do mundo em que o anti-semitismo era quase inexistente. Anti-semitismo em termos formais seria aplicado não só a judeus mas também a cristãos e a muçulmanos, porque todos são semitas. Mas a criação do termo e a sua utilização desde sempre apenas visou os judeus. Curiosamente, Portugal é também dos poucos países do mundo que engloba herança genética dos 3 povos semitas em boa parte do seu povo, ainda por cima misturada. Por isso, é particularmente triste ver que cresce o anti-semitismo também em Portugal, tal como acontece no resto da Europa. O conflito entre Israel e a Palestina não explica tudo. Na verdade, é inacreditável que se saiba tão pouco sobre este conflito quando ele aparece diariamente nos meios de comunicação social. Parece até que o que interessa é que o problema não se resolva, para que possa existir um pretexto para odiar os judeus (porque na verdade, ninguém se interessa pelo destino dos palestinianos). Também no caso de Israel, muito facilmente se confunde as políticas de um governo com as aspirações de um povo (quase 70% dos habitantes de Israel acredita no futuro do estado da Palestina). Este é outro assunto que deveria ser visto à parte, mas já é fruto de atenções recorrentes na blogoesfera.
O xenofobismo não fica por aqui. Não desapareceram os preconceitos contra africanos e asiáticos, mais uma vez apoiados na ignorância e na pretensão de superioridade (às vezes inferioridade). As pessoas usam a palavra “cigano” como insulto e nunca perderam um momento para saber mais desse povo que há tanto tempo se encontra entre nós. Seja qual for o país ou a zona do planeta, quase imediatamente há um disparate para lhe associar.
É difícil de explicar como se cai numa situação destas, sobre a qual ninguém parece dar importância. A nossa herança de animal tribal, que tem necessidade de defender um território, talvez esteja confortável assim. Só assim se explica tanta credibilidade que damos a pessoas que espalham tantas mensagens de ódio. Na realidade, não posso dizer que exista alguém que defenda o ódio contra todos. Os ideólogos, às vezes mascarados de jornalistas, outras de pessoas sérias, vão-se repartindo. Uns criticam os americanos, outros os europeus, ou os franceses, ou os árabes, ou judeus... Para o homem comum, que vê falar mal de “toda a gente”, o resultado é que começa a desconfiar de todos os que estão no exterior.
Mas considero as elites piores que o homem comum. O homem comum não sente a necessidade de se explicar que o homem mais “evoluido” mostra. Essa necessidade aumenta exponencialmente a possibilidades de se mentir a si próprio, porque respondem a fortes necessidades emocionais. Se o homem “evoluído” procurasse destrinçar alguma verdade, aí poderia justamente merecer o título, mas apenas pretende confirmações ou desculpas para as suas fáceis certezas.
Mas porque estará a Europa a sofrer estes fenómenos, a morder a quem lhe deu a mão, a cuspir no prato em que comeu, ao mesmo tempo que olha com extrema benevolência para quem a quer exterminar? O desejo de auto-holocasto parece cada vez mais evidente, não sendo ainda evidente… Porque caímos neste estado terminal, não sei. Interessava saber se há formas dele sair. Acredito que muitas pessoas mais velhas queiram mesmo colocar termo à vida de forma suave, desgostadas por existências vãs e por falta de coragem em aceitar desafios, por terem toda a vida acreditado num mundo de salvadores que as tornou fracas. Vejo essa cobardia um pouco em todos nós, logo a começar pelo fim da adolescência. Mas penso, se esta gente também quer o mesmo fim precoce para as pessoas que ama. Quererá? Será resultado da “Educação para a tristeza”? Teremos atingido um ponto de saturação em relação a nós mesmos? Ou será que é apenas problema de alguns?
Normalmente, quando faço um post negativo, termino com algum pensamento de esperança. Mas custa-me encontrar esperança numa situação destas, quando pessoas que sempre considerei sérias e ponderadas se deixam envolver na terrível teia. Como trata-se apenas de uma visão minha, sempre em evolução, existe uma grande margem de erro associada. Espero que esse erro seja suficiente para estar bem enganado.
<< Home