Livros & leituras (1) - Viver para contá-la – Gabriel García Márquez
Antes de falar no livro em questão, gostaria de dar uma pequena explicação do porquê de também comentar livros. Começa por ser para não os deixar morrer e, sabendo que em cada livro que ler, possivelmente irei comentá-lo, então a leitura será mais atenta e, logo, mais “prazeirosa”. Serão comentários de alguém que não é especialista em livros e, por isso, não se alongará em descrições sobre o estilo, a forma e o enquadramento literário, e irei só àquilo que considero a essência, sem me meter a explicar sobre o que não sei. Muitas vezes, mais interessante que as divagações dos eruditos são as impressões da pessoa comum.
Viver para contá-la é, penso, o livro de despedida de Gabriel García Márquez (GGM). Já tinha lido quase todos os seus livros e visto um documentário sobre a sua vida. Sabia que tinha estudado direito e sido jornalista. Mas isto nada diz sobre a vida real, GGM nunca se sentiu bem a estudar direito, curso que mal começou, e a sua entrada no jornalismo nada tem a ver com o que acontece actualmente aos jovens estagiários de comunicação social.
Nas suas quase 600 páginas, o livro fala, aproximadamente dos primeiros 30 anos de vida de GGM na Colómbia, antes de vir para a Europa. É a sua formação como escritor e como homem, onde até aí só tinha escrito alguns contos, “A Revoada” e ainda “O Relato de um Naufrago”, que foi o seu último trabalho como jornalista. GGM ainda não havia escrito nenhum dos seus romances que o iriam tornar mundialmente famoso, mas já levava a matéria de fundo de “Do amor e outros demónios”, “Crónica de uma morte anunciada”, “Amor em tempos de cólera”, este baseado em parte no romance dos seus pais. Levava também já dentro de si o ambiente mágico e meio onírico que existe em vários dos seus livros e em especial de “Cem anos de solidão”, em que ficamos a saber que certas coisas no romance se tinham passado na vida real, como a irmã que comia terra e o avô que fazia peixinhos de ouro.
Mas o livro não é uma manual para ser escritor, apesar de GGM dar algumas pistas para isso indirectamente, nunca dando qualquer conselho. As circunstâncias passadas não são repetíveis, nem as pessoas são repetíveis. E muitos tiveram vidas e experiências como ele, mas nenhum escreveu como ele.A Colômbia do século XX é um local de um caos previsível, onde os génios aparecem como cogumelos e os massacres são vistos simultaneamente com terror e com naturalidade. Há uma tristeza no ar, ao mesmo tempo em que as festas se improvisam naturalmente e qualquer um se pode facilmente transformar num poeta, cantor ou instrumentista de excepção. Parece não existir um sentido histórico profundo, apenas algumas recordações do século anterior, mas é tudo asfixiante por ser tão pouco para a riqueza daquele povo. Liberais e conservadores alternam no poder, podendo os homens de poder tanto ser cavalheiros de excepção como brutais carniceiros. Os colombianos parecem ver o futuro e o exterior, para o bem e para o mal, como os EUA, com algumas recordações de Espanha e passagens por países vizinhos.
No seu estilo, GGM não conta a sua vida de forma linear no tempo, indo por vezes para trás e para frente, dando um sentido encantatório às coisas, mas ainda assim dando um retracto fiel do sucedido. GGM fala da sua vida sem censura, não esconde nada, mas mantém o recato. No alto da sua idade, GGM descreve a sua vida à distancia, como se fosse de outrém, mas simultaneamente com a lucidez do dia seguinte.
GGM não fala só de si, fala também dos seus pais, dos seus avôs. A vida em criança é atribulada, com a constante mudança de casa. GGM torna-se “autónomo” quando vai para o colégio. Nunca mais irá viver com os pais, que só visitará esporadicamente, muitas vezes não reconhecendo alguns dos seus muitos irmãos. GGM confessa a sua timidez, fala do seu envolvimento com mulheres, algumas casadas, outras prostitutas. GGM facilmente fazia amigos para toda a vida. Vai relatando todos os pormenores que lhe foram ocorrendo, parecendo nunca ter momentos de escolha, apenas aceitando e adaptando-se, um produto do acaso. Em relação à escrita, GGM explica os autores que o influenciaram, como os conheceu, muitas vezes através de amigos. Relata a difícil busca do seu estilo, sempre desapegado de tudo já feito, não renegando as suas eternas dificuldades na ortografia e o seu vício fumador incontrolável. GGM teve os seus mestres ocasionais, muita gente o marcou, a muitas "sumidades" se juntou em inúmeras tertúlias. Sente-se a criatividade no ar, todos os momentos são de excepção, os melhores brilham.
Fica-se com a sensação que GGM não inventa nada, apenas descreve. Por vezes, relata o que todos já sabem e bem conhecem, mas fá-lo na sua maneira única, que faz parecer que tudo ocorre pela primeira vez ao lermos.
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