terça-feira, fevereiro 06, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (II)

ATAQUE À SEGURANÇA E À DEFESA

Seria cómodo pegar no post anterior, que descreve em abstracto uma situação de degradação civilizacional em vários planos, e traçar um paralelo com a nossa própria civilização, em especial no que concerne à Europa ocidental. Apesar de me parecer óbvio que a Europa está efectivamente em declínio acentuado nos planos militar, social e espiritual, é ainda cedo para dizer que desistiu. Há várias forças em confronto e esta disputa ocorre de várias formas, a maior parte delas passando despercebida. As mesmas pessoas podem defender ideias contraditórias. Isto não revela nada de extraordinário, as nossas acções têm frequentemente consequências não desejadas. Só alguns de nós têm tempo, disposição e, diria mesmo, a disciplina férrea indispensável para conseguir analisar com alguma lucidez os efeitos das ideias que defendemos.

Que evidências temos de que a civilização ocidental europeia começa a encaixar-se no modelo em declínio descrito anteriormente? Vejamos o plano militar. A União Europeia não tem exército único e mostra uma capacidade pouco mais que nula para intervir em qualquer situação de confronto. Esta debilidade tem sido astutamente mascarada com as frequentes acusações aos Estados Unidos, mais ao menos fundadas, de belicismo, imperialismo, entre outras. Mas vamos supor que os Estados Unidos se retiravam da NATO e recusavam intervir fora das suas fronteiras em que quaisquer circunstâncias. É muito cómodo ter uma postura pacifista quando se vive numa situação de segurança (terrorismo à parte, é uma situação a ver de seguida) e se sabe que nenhum país terá o desplante em nos declarar guerra. Mas sem o “guarda-chuva americano” esta sensação de segurança ir-se-ia esfumar num instante, as fragilidades europeias ir-se-iam tornar evidentes, não só em relação ao exterior mas também em termos internos, com questões de nacionalismos emergentes, secessões e com os provável reacender de rivalidades centenárias entre nações do velho continente, que já nos deram duas guerras mundiais.

Mas a segurança tem dois planos, o externo, onde podem intervir os militares, e o interno, nos países ocidentais tendencialmente plano de acção de forças civis, cada vez mais com empresas de segurança que não se constituem autoridades. O terrorismo toca ambas as áreas, especialmente se quisermos ter uma atitude activa no seu combate isso poderá implicar a utilização de forças militares contra estados pária. Bem sabemos que não são decisões consensuais, pelo contrário, suscitam uma grande oposição pública e envolvem muitos custos, incluindo o de vidas humanas, além de terem resultados incertos num complexo contexto internacional. No entanto, uma Europa sem capacidade militar não terá esta forma de combate ao terrorismo, mesmo se chegasse à conclusão que se tinha tornado imprescindível. Há relatos de que mesmo os diplomatas franceses à porta fechada concedem, com naturalidade, que os americanos intervenham militarmente em qualquer situação de crise, apesar de posteriormente os virem criticar veementemente em público por isso.

O terrorismo não constitui o melhor exemplo para avaliar as debilidades europeias fundamentais em termos de segurança interna. Talvez por a Europa ainda ter alguns focos de terrorismo, com a ETA e o IRA, além de ter uma memória fresca relativamente a outros grupos, como as Brigadas Vermelhas, as FP-25 (de Abril) ou o Baden Meinhoff, a atitude interna ao seu combate parece ser bastante mais séria e coerente comparando com a que revela na sua política externa. As debilidades da segurança interna prendem-se mais com delitos comuns e a cada vez menor consideração pelas vítimas.

Convém, antes de mais, contextualizar. Até há poucas décadas atrás algumas prisões europeias, mesmo em países democráticos, tinham condições desumanas e condenações prolongadas significavam quase penas de morte. Temos também que apenas há cerca de três décadas países como Portugal, Espanha e Grécia libertaram-se de ditaduras, regimes que dificilmente podem dar garantias de isenção dos tribunais e de separação de poderes. Por isso, o incremento de garantias para presumíveis autores de crimes e o estabelecimento de condições mínimas para encarceramento é inegavelmente uma conquista civilizacional.

Mas ao mesmo tempo que se deu esta evolução humanista foi ocorrendo outro processo de influência que se pretendeu colar à primeira mas foi bastante mais além. A evolução humanista baseia-se em algumas ideias simples, que qualquer suspeito de crime ou delito tem direito a um julgamento imparcial e, se condenado, a pena deve estar em conformidade com a infracção, que esta será aplicada com o mínimo respeito pela condição humana. Note-se que em nenhuma circunstância se tenta desresponsabilizar quem infringiu a lei. O processo que decorreu em paralelo pegou neste ponto, tentou passar a ideia de que não existe uma distinção clara entre criminoso e vítima . Claro que em algumas situações assim é, mas tratam-se de casos muito particulares e fazer disto a regra é simplesmente abominável.

Mais que isso, tentou passar-se a ideia, e com bastante sucesso, de que não há responsáveis individuais, todos somos responsáveis, a culpa é da sociedade, das suas injustiças, das desigualdades. Longe de ser humanista, esta ideia é profundamente ofensiva para os mais desfavorecidos, porque os considera a todos potenciais criminosos. A isto junta-se um complexo colonialista que leva também à justificação, quando não omissão, de crimes cometidos por certas etnias.

Não vou discorrer sobre os efeitos que estas ideias «progressistas» tiveram sobre a legislação, por ser área de que pouco sei. Mas são evidentes os seus efeitos em termos sociais. O conceito de autoridade foi completamente desvalorizado e as pressões mediáticas vão no sentido de desculpar a maior parte dos crimes. Investir em segurança deixou de ser uma prioridade. Claro que pontualmente vão aparecendo «casos que deixam o país em estado de choque», e aí todos se insurgem contra o estado de coisas, mas são fogos-fátuos que se extinguem rapidamente. As pessoas vão adaptando-se à insegurança crescente, esperando em vão por algumas palavras de esperança dos políticos. Da esquerda não as ouvem porque este campo não é sua prioridade. A direita também se cala para não ser comparada com a extrema-direita. E são precisamente estes radicais que aproveitam a lacuna que mais ninguém quer preencher e vão subindo consistentemente nas votações por essa Europa fora, porque supostamente sabem ouvir os apelos do cidadão comum e estão atentos às suas necessidades. É esta uma das muitas ironias da Europa, as políticas mais radicais da esquerda abriram caminho para os mais radicais da direita.
No próximo post analisarei o plano social, onde também abordarei a questão do aborto. Inicialmente estava previsto fazê-lo ainda antes do referendo mas sem a ideia de tomar posição no mesmo porque o âmbito de análise é bastante distinto. Como o post só será publicado na próxima terça-feira, depois de conhecidos os resultados, será mais fácil aceitar que não se trata de mais uma acção de campanha.