segunda-feira, outubro 23, 2006

Os malefícios da vida moderna


Existe uma crença generalizada de que a vida moderna, estilo ocidental, dito consumista de forma depreciativa, veio trazer uma série de maleitas até aqui nunca vistas. Apresentam-nos estatísticas dos aumentos da obesidade, doenças cardíacas, maleitas relacionados com o stress. Paralelamente a isto, quando não é a saúde física que está em causa, são as disfunções mentais. Parece que não há ser humano que hoje em dia não seja um pouco paranóico, talvez a caminhar para a neurose e nos piores casos com a esquizofrenia à porta. Para o comprovar veja-se os consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas cheios e a procura incessante de astrólogos, curandeiros, literatura de auto-ajuda e esoterismos tipo Paulo Coelho.

Este tipo de crítica social acaba na esterilidade, ao invés de ser um instrumento de aperfeiçoamento, quando resvala para o auto-flagelamento. Há a ideia recorrente de que enfrentamos problemas inéditos para os quais surgem várias reacções. Uma delas é um misto de fatalismo e niilismo, onde importa apenas desfocar as questões, desconversar, deitar abaixo quem propõe soluções, sem apresentar nada em troca. Depois há reacções activas. A mais ingénua parte da suposição que para estes problemas inusitados só mesmo soluções exóticas e daí uma atracção por práticas longínquas. No fundo, acaba por ser mais um niilismo porque é uma fuga e na grande maioria os indivíduos nunca chegam muito bem a perceber onde se meteram. Mas há também a procura de soluções mais pragmáticas, que acabam por ser apenas marxismo com novas vestes e novas causas como a ecologia, a luta contra a globalização ou o multiculturalismo.

Então, afinal, que tipo de situação temos hoje? Trata-se de um contexto de grande mudança, onde naturalmente reinam as incertezas e a ansiedade. Face a isto propõem-se soluções fáceis, muitas delas com o totalitarismo ao fundo do poço. Mas isto nada tem de inédito, quantas vezes não aconteceu já ao longo da História? Penso que a primeira coisa a fazer é tentar perceber que muitos dos problemas nada têm de novo e aqueles que de facto são inéditos podem ser facilmente enquadrados.

Pensemos na condição física dos indivíduos das sociedades modernas. Temos a ideia idílica que as pessoas no passado eram mais fortes, resistentes, saudáveis, não morriam de Alzheimer, nem de ataque cardíaco ou nem de cancro. As crianças não tinham asma nem chegavam à adolescência com excesso de peso ou anorécticas. Os homens eram rijos até irem para a cova e não ganhavam barriga de comando na mão e as mulheres pariam em série sem darem gritos de dor. Mas se pensarmos nas taxas de mortalidade e na esperança de vida, percebemos que há aqui algo que não bate certo. Quando os velhos eram poucos, naturalmente a profusão de certas doenças que os atingem maioritariamente teria de ser naturalmente reduzida. Além disso, pode-se supor que alguma selecção natural fazia que os mais idosos tivessem uma genética que os afastasse, naturalmente, mais das doenças que a média.

Mas é também óbvio que certas doenças e hábitos que hoje temos devem-se à abundância e não os poderíamos ver num passado de constante escassez. Mas isso não quer dizer que a abundância seja pior que a penúria. Cada coisa tem os seus prós e contras mas, logicamente, as desvantagens da miséria são muito superiores às da fortuna. Mas por incrível que pareça, a memória selectiva de muitos insiste em ver as poucas vantagens que as situações de precariedade têm, apesar de na prática nem por um segundo pensam em abdicar das vantagens que a vida moderna lhes concede. Há também certas doenças que hoje parecem muito comuns mas sempre existiram, acontece que antigamente o seu diagnóstico raramente se fazia e as pessoas morriam de morte “natural”. Penso também que é inegável que há doenças que actualmente têm uma muito maior incidência devido à poluição dos recursos naturais, como o ar, mas mesmo aí não há razão para ser-se fatalista uma vez que em muitos domínios têm havido progresso e melhoria das condições.
Em relação aos desvarios da mente, não sei se estamos pior ou melhor que antigamente. Penso que há uma certa frustração por ver que o aumento dos níveis de escolarização não contribuíram para tornar as pessoas mais “capazes”, ou seja, com mais carácter, lucidez e capacidade de resolver problemas. No entanto, é preciso ter em conta que estes atributos são medidos em relação às questões de cada época, e como hoje temos problemas mais complexos, em termos absolutos pode-se supor alguma evolução. Mas neste capítulo da mente, há ainda a ideia de que as pessoas andam todas num estado de semi-loucura. É preciso também notar que só recentemente se começou a estudar os processos mentais em profundidade, por isso só agora os nossos pequenos e grandes distúrbios podem ser classificados.

Contudo, o mito mais forte é o que diz que as sociedades modernas vivem num ritmo infernal sem paralelo, causando um stress como nunca se viu. E o corolário é que muita gente, por isso, procura agora um modo de vida mais simples e longe das grandes cidades. Mas vejamos alguns aspectos da questão. É um dado que as pessoas já trabalharam muito mais do que hoje. É também um dado que hoje gozam de uma muito maior estabilidade e ninguém é responsabilizado por nada. Depois, stress a sério existe em tempos de guerra e quando há crises profundas. Parece-me, antes, que o stress e o cansaço, na maior parte dos casos deriva de uma ausência de envolvimento em projectos realmente motivadores, substituídos por uma série de “obrigações” que não suscitam grande interesse. Penso ainda que este estado é reforçado por uma indecisão face a tantos estímulos presentes e mesmo quando se abraça um determinado objectivo, a persistência é de curta duração, para passar logo ao próximo projecto inócuo.

Finalmente, o suposto afastamento da confusão das grandes cidades que muitos procuram hoje em dia. Alguns divisam aqui uma prova da degenerescência da civilização ocidental, que se afastou da natureza e obriga os homens que se querem encontrar a si mesmo procurar refúgio longe de tudo. Acontece que também isto nada tem de novo. Desde tempos imemoriais existiram homens que se afastaram de tudo para tentar atingir algum tipo de transcendência. Os tempos modernos não estão para eremitas nem para ascetas. Procura-se mais um afastamento temporário, de preferência com alguma adrenalina à mistura, mas antes disto consistir num repúdio à civilização, parece antes uma tentativa de recarregar baterias para a ela voltar renovado.