quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (III)

A evolução demográfica pode ser uma das principais ameaças civilizacionais. O excesso ou o défice populacional quebram um equilíbrio e isso tem as suas consequências. O aumento da população é normalmente visto como a maior ameaça, trazendo vaticínios do esgotamento de recursos que conduziriam a um inevitável holocausto. O número da actual população do planeta iria espantar muitos teóricos há umas décadas atrás, influenciados pelas ideias malthusianas. Mas há muito que as ideias de Malthus foram rebatidas, por não consideraram a possibilidade do desenvolvimento económico e de poder utilizar os mesmos recursos de forma mais eficaz. A discussão não tem apenas estes vectores mas não vai avançar, por ora.

Falando em declínio civilizacional, o tema da série, a redução da população é algo bem mais ameaçador. Uma civilização que cresce demasiado pode enfrentar uma catástrofe mas uma que regride no número da sua população é porque desistiu de continuar. Penso ser um mito os casais terem actualmente menos filhos por egoísmo. Em alguns casos assim será, mas o principal motivo é, precisamente, a falta de motivação. Aprenderam as pessoas a enganar a natureza, conseguindo ficar com o prazer sexual mas sem o fardo da reprodução? Parece lógico pensar assim mas isso é esquecer que o instinto reprodutivo vai para além do sexo. Além disso, a esmagadora maioria das pessoas que opta por adiar a maternidade/paternidade não foi para fazerem algo de grandioso. Continuam presos a uma vida sem objectivos, sem chama, sem interesse. Na realidade este adiamento da função reprodutiva deve-se precisamente a estas razões. O que não faltam são pessoas com vidas preenchidas, que realizaram grande obras mas nem por isso deixaram de ser pais e mães.
Apresentado este contexto, como encarar o referendo ao aborto e os seus resultados? Inicialmente estava previsto escrever que se tratou de uma mera oficialização do direito ao egoísmo. Mas substituiria agora «egoísmo» por «alienação». O referendo não muda nada de substancial em termos civilizacionais. Existia já uma aceitação quase universal da inevitabilidade do aborto. Mesmo aqueles que vêm o acto abortivo como um crime bárbaro não conseguiram, nos últimos anos, lançar uma única iniciativa relevante para o seu combate. E na verdade, não há nada que se possa fazer, excepto atender alguns casos pontuais. Ninguém pode incutir noutro ser humano o dom da empatia.


Onde este referendo em particular denota um sintoma do apelo ao suicídio civilizacional não é na despenalização do aborto. Isso é uma mera formalização do que já era prática comum. Nem sequer está numa contabilidade que se possa fazer, entre a baixa taxa de natalidade e como ela poderia ser combatida através da redução do número de abortos. Isso são abstracções sobre dados agregados que nada têm a ver com o fenómeno particular e íntimo do aborto. O indício do suicídio civilizacional está, antes, na aceitação generalizada e quase sem contrariedade do financiamento do aborto pelos impostos de todos. Desta forma aceita-se que o acto abortivo passa a ser uma responsabilidade comum, que ninguém sente, e não de quem de facto cometeu os actos que levaram àquela situação. Isto é ir muito além de uma simples despenalização. É, antes, deixar de reconhecer que o aborto é um dilema moral. Pedir a despenalização do aborto, por razões pragmáticas relacionadas com a saúde pública ou por considerar que o direito de escolha da mulher é o valor mais importante em causa, não implicaria a criação de um novo direito. Mas foi isso o que aconteceu. O que é realmente preocupante foi a facilidade com que se ultrapassou esta barreira. E é isto que faz temer que não hajam quaisquer outras barreiras que não sejam transponíveis e, para cúmulo, serem ainda vistas como avanços civilizacionais.

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