segunda-feira, março 29, 2004

Os últimos dias de Outono


Ao Inverno podemos associar o calor de uma lareira, o Natal, o Ano Novo e, cada vez mais, umas férias na neve – para muitos, agradáveis possibilidades. No entanto, o Inverno é quase sempre considerada uma estação maldita. Vento frio, humidade que fragiliza o corpo, chuva desagradável – é isto o Inverno, também. Talvez por isso exista uma certa melancolia pelos últimos dias de Outono, mais precisamente, aqueles dias que se sentem ser os últimos ainda com um calor agradável e em que a natureza se pinta de vários castanhos agradáveis.

Serve este intróito para estabelecer, de forma fugidia, um paralelo com a realidade social. Cada vez mais pressinto que também estamos nos últimos dias de Outono da nossa civilização. Com isto não quero dizer que vivemos num mundo perfeito que está em perigo por alguma ameaça exterior. Penso somente, esperando estar enganado, que a ameaça vem de dentro e coisas como o terrorismo apenas servem de catalisador numa reacção que não iniciaram nem vão acabar. Já expressei algumas vezes que a Europa poderia muito bem vir a ser governada por ditaduras sangrentas no século XXI. Imaginei este triste destino para daqui a umas décadas. Penso agora que isso poderá ocorrer muito mais depressa.

Sempre fiquei perplexo com as movimentações sociais que levaram à instauração de ditaduras. Se bem que as ditaduras militares podem ser instauradas pela força das armas, todas as outras têm por detrás algum tipo de apoio popular. Um mecanismo qualquer de defesa levava-me a acreditar que tais coisas deixaram de ser possíveis nas sociedades europeias actuais. Apesar de ter sido sempre um crítico do chamado ocidente, acreditava já ter este atingido uma maturidade que não lhe permitisse voltar atrás. No entanto, a realidade é óbvia. A natureza das pessoas não se altera de um dia para o outro, e tanto o sublime como o monstruoso de que são capazes têm foros de constância.

Todo este negativismo baseia-se na intuição de que já estão em decurso movimentações que nos conduzirão a um negro futuro. Em outras palavras, já está em andamento a Marcha do Apocalipse. Passando a coisas mais concretas, falo de apatia, má-fé e ódio. É raro encontrar alguém que não esteja carregado de apatia. Pensando nas pessoas que conhecemos, muitas delas poderão desmentir isto. Mas um olhar mais atento revela que a energia de alguns mais não é que ilusória. No fundo já desistiram mas não querem admitir.

O ódio e a má-fé andam de mãos dadas, justificando-se e desculpando-se mutuamente, ao mesmo tempo que se reforçam. No fundo, o ódio parece-me ser a única coisa que ainda anima muita gente. Talvez fosse um negócio rentável a abertura de clínicas para desintoxicação do ódio. A má-fé revela-se várias formas. Começa logo pelo extermínio da sensatez. Ser sensato, ponderado, justo, admitir ter dúvidas, evitar extremismos – incrivelmente, alguém assim passou a ser mal visto por quase todos. Apesar de em teoria todos concordarem que alguém de carácter deve possuir todas estas virtudes, numa situação concreta, quem não assumir uma posição dura, sem dúvidas, deixou de ter validade. Além disso, se for especialmente arrogante, insultuoso, fizer todo o tipo de previsões catastróficas, ignorar os factos e construir uma verdade alternativa, então, corre o risco de ser considerado um visionário, um novo líder.

Falo de pessoas banais, de intelectuais, de artistas, de políticos, de nós… Cedemos ao ódio, mas cedemos de uma forma que só vemos o ódio em outros. Lentamente, defendemos soluções que conduzem à auto-destruição. Pensei que a esperança poderia vir das artes, das novas demandas espirituais. Mas é esperança vã. Estas pessoas enfermam de um novo pecado original. O de se alhearam ou mesmo oporem às questões de poder. Se bem que não cair na tentação de usar o poder possa ser uma virtude, fazer de conta que a questão do poder não é essencial para a vida humana, ou então, pura e simplesmente, estar em eterna oposição contra O Poder (governos, tribunais, instituições), acabam por ser atitudes cancerígenas para toda uma cultura – e em última análise, uma acto de poder em si.

Ao mesmo tempo que espero estar enganado, apercebo-me que talvez este Inverno já tenha chegado. Já não me sinto a viver na mesma liberdade que tinha há cinco anos atrás. Quem me limita a liberdade são as pessoas (mas nunca os amigos), existe sempre um tom de censura no ar. Assim como uma grande ameaça velada. Penso nas crianças de agora que possivelmente irão acabar por viver num Inferno por nós criado.