segunda-feira, março 01, 2004

Um pé no cinema


Deve ser difícil encontrar uma pessoa para avaliar cinema pior que eu. Não que não saiba avaliar a riqueza do argumento e recentemente a fotografia tem me ajudado na apreciação das questões estéticas. Mas de resto sou um observador medíocre na apreciação de interpretações, planos, e essas coisas.

O Regresso do Rei ganhou todos os óscares, que eu nem sei quais são. Desiludi-me com a primeira parte (A Irmandade do anel) por ter cortado brutalmente sequências do livro. Gostei muito da segunda parte, As Duas Torres, porque já me tinha esquecido do livro. A terceira parte d’ O Senhor dos Anéis é talvez a mais fraca. A longa história decorre num universo completamente criado pelo autor, com muito de inesperado e surpreendente, mas o final é previsível (seria o único decente?).

É curioso que dois filmes recentes tenham sido rodados no Japão. O muito comentado Lost in Translation e o mal amado Last Samurai. Lost in Translation é o tipo de estória que me agrada, que pode muito bem ser real e invulgar ao mesmo tempo. De facto, o pior do filme é a tradução portuguesa, que me escuso de colocar aqui. Porque Sofia Coppola pareceu-me querer propositadamente recusar um filme/argumento de amor, traição, drama ou qualquer outra coisa “extraordinária”. É um filme apenas sobre a vida e, quanto a mim, um pouco sobre empatia.

O Japão moderno serve de cenário de fundo, um cenário estranho, complexo e por vezes demasiado simples. O filme não explica nada, apenas expõe. Não diz que é bom ou mau, nem melhor ou pior. Mostra, apenas. As duas personagens principais passeiam-se pelo filme e nunca chegam a ter um relacionamento. Estão juntas apenas porque há uma empatia entre elas. E para mim a empatia é mais importante que todos os sentimentos que foram inventados. Para um filme ser interessante as personagens não têm necessariamente que subir aos céus ou descer aos infernos.

Last Samurai é mais difícil de comentar aqui, porque teria muito mais para dizer. É um filme difícil de classificar porque mistura coisas muito boas com outras mal estudadas. Mas tanto umas como outras são de identificação quase impossível para a maioria dos espectadores. O filme não segue os factos históricos, adulterando-os um pouco para tornar a estória ficcional que se lhe sobrepõe mais dramática. Tom Cruise, como americano, nunca teria ido para o Japão daquela forma, porque os modelos que os japoneses queriam aprender eram franceses e prussianos. O general samurai, depois de ter perdido a batalha no início do filme, pede para lhe cortarem a cabeça. Isto acontecia mesmo, mas não da forma como é mostrada, em que a cabeça rebola no chão. Nestas situações, o corte do pescoço era efectuado deixando uma réstia de pele, para a cabeça não se separar completamente do corpo, o que era considerado indigno. Por isso, alguns recusavam-se a fazê-lo se não tivessem a habilidade suficiente.

Como coisas muito boas do filme, em primeiro lugar saliento o desempenho físico de Tom Cruise (como actor não sei avaliar). Algumas das coisas que ele faz, que poderão parecer simples, normalmente demoram anos de treino intenso a aprender. Outras coisas extraordinárias são pequenas sequências de Kyudo (tiro com arco, sem ser em batalha), de Aiki-jujitsu, kendo, para além das cenas de luta. O samurai devia ser despojado de apegamentos em relação à vida e à morte, e isso também transparece no filme.

Curiosamente, há uma coisa em comum nos dois filmes. Em Lost in Translation a jovem filósofa visita um templo onde cantavam algo. O último samurai, em determinada altura, sózinho, recita algo. Em ambos os casos tratava-se do Sutra do Coração (Hannya Haramita Shingyo). Se já ouviram falar que “A forma é o vazio e o vazio é a forma”, é daqui que vem, sendo consideradas as próprias palavras de Buda.