Um pedido de desculpas à Al-Qaeda
A Espanha virou à esquerda. Confesso que se fosse eleitor espanhol seria provável também alinhar pela alternativa. Mas apenas por achar que três mandatos consecutivos para a mesma força partidária pode ser algo muito nocivo, criando-se vícios governativos que se podem institucionalizar por gerações. Contudo, esta não foi a razão dos eleitores terem mudado o seu voto. As sondagens antes dos atentados em Madrid não deixam margem para dúvidas que foi este o acontecimento responsável pela reviravolta.
A associação de ideias é simples. A partir do momento em que as evidências da autoria dos atentados recaíram sobre a Al-Qaeda, eles só aconteceram devido ao alinhamento espanhol com os EUA. Como tal, há que punir os responsáveis pelo alinhamento.
Voltemos um pouco atrás. O terrorismo não começou com a queda das torres gémeas em Nova York. No entanto, este acontecimento levou muitas pessoas a sentirem-se na obrigação de tomar posição. Na Europa e um pouco por todo o mundo, a principal posição pode-se sintetizar como: “Eu sou contra o terrorismo mas os principais responsáveis pelo seu aparecimento são os EUA.”
As ideias variam bastante mas há um padrão base comum a muitas. A tese central diz algo como: os EUA são o principal interventor a nível internacional, fazendo-o de várias formas, como a económica e a militar. Este imperialismo causou uma reacção natural de repúdio, que no seu extremo toma a forma do terrorismo. Mais tarde ou mais cedo elas iriam actuar. Os EUA, com a infelicidade de terem alguém como Bush na presidência (o homem que mais adjectivos negativos recebeu na história da humanidade), agiram de forma vingativa e cega, causando grande destruição e morte. Culminaram com a invasão do Iraque, inventando mentiras como o combate ao terrorismo e a existência de armas de destruição maciça, apenas com a intenção de se apoderarem das riquezas deste país. Os EUA só estão a colher o que semearam. Qualquer alinhamento ao lado dos EUA é no mínimo estúpido e o mais certo é não passar de um premeditado acto criminoso com fins usurpadores.
Constato que quem pensa assim não irá mudar de opinião por nada. Poderá eventualmente torná-la cada vez mais expressiva e radical e depois, num futuro próximo, esquecê-la de um dia para o outro. Constato também, desiludido, que nesta altura já não tem qualquer importância saber se este raciocínio (a que alguns chamam anti-americano) possui alguma veracidade. O certo é que a maioria das pessoas pensa assim e muito do nosso futuro depende desta crença, independentemente dela ser verdadeira ou falsa.
Os atentados em Espanha foram um primeiro ensaio para a Europa. Os espanhóis votaram naquilo que pensam dar mais segurança e foi um acto natural. Se tivesse sido em Portugal os resultados ainda teriam sido mais expressivos, se é que alguém tivesse coragem de sair de casa. A Al-Qaeda, partindo do princípio que foram mesmo os responsáveis pelos atentados, estará bastante satisfeita. O número de mortos e feridos foi grande, e o seu mediatismo enorme. Grande transtorno, medo e variações na bolsa. Para os membros da Al-Qaeda a votação espanhola foi como que um pedido de desculpas. Um pedido de apaziguamento que eles acharão patético, mas talvez resulte no curto prazo.
O novo primeiro-ministro espanhol, Zapatero, deu bastante ênfase ao corte da ligação umbilical com os EUA. A declaração vai de acordo com as suas intenções e com a intenção da maioria do povo espanhol, uma bela comunhão. Talvez devesse ser feita a vontade da maioria. Por toda a Europa ninguém está ao lado dos americanos, que se assuma isso de uma vez. Seja o local onde me encontre, sempre que se fala de algo vindo dos EUA, logo de seguida vem uma série de insultos e comentários jocosos. Já ninguém suporta os EUA, que se faça um referendo para aboli-los, que se proíba a sua entrada nos países, que se boicote os seus produtos. Se for preciso, que se faça guerra contra eles, seja ao lado de quem for. Afinal, não são eles a maior ameaça à estabilidade do mundo?
Suspeito que mais tarde ou mais cedo vamos cair neste cenário. Quem sabe se não é um bom motivo para escrever um livro. Talvez o motivo de que andasse à procura. O século XXI poderá ficar conhecido como o do desmembramento total da Europa e do aparecimento de mais ditaduras sangrentas. Às vezes, tenho um pensamento sombrio de ser isto que todos procuram. A cultura ocidental está demasiado marcada pelo desejo do apocalipse.
Constato agora, chocado, que a racionalização de tudo isto faz parecer irrelevantes as mortes ocorridas. Fica apenas uma leve sensação de medo, por nos poder acontecer a nós também, e a emoção para debater o assunto de forma acalorada. Nós, humanos, conseguimos sempre levar a novos extremos o sentido da palavra deplorável.
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