segunda-feira, junho 28, 2004

A Fuga de Barroso vs. Luís Figo


Várias vezes ouvi “gente de bem” lançar violentas críticas sobre a atitude de Luís Figo no último jogo contra a Inglaterra. Ser substituído, mostrar-se chateado e não se juntar aos colegas passou a ser um grande pecado. Em mais de 20 anos que assisto a jogos de futebol, vi isto acontecer inúmeras vezes, por vezes com jogadores de alta craveira quase a chegar a vias de facto com os treinadores. Nunca é uma atitude bonita, nem deverá ser encorajada. No entanto, as análises “frias” que foram feitas mostram que as pessoas se habituaram a “coisificar” as personagens públicas, a retirar-lhes grande parte do seu lado humano.

Apesar de muito se falar da empatia entre público e equipa, tal só mostra a total incompreensão do que isso significa. Porque empatia implica igualdade, o colocar-se no lugar da outra pessoa, de sentir o que ela sente. Não é isso o que acontece, porque o que torna as figuras públicas especiais para a maior parte das pessoas é verem-nas como diferentes. Por isso, pede-se a Luís Figo que reaja de forma diferente do que faria qualquer um de nós.

Mas vamos imaginar que Figo é como nós. Depois de uma brilhante carreira nos dois maiores clubes espanhóis, Figo joga talvez o seu último jogo pela selecção portuguesa, palco de tantos falhanços. Portugal perde, já estamos na segunda parte. Figo faz um bom remate, que não esteve muito longe do golo. E é nesse momento que é substituído. Não consigo conceber o que pode ter sentido naquele momento, em que imaginou que seria a última vez pisava um relvado representando Portugal, sem poder dar mais o seu contributo. Talvez a sua vontade fosse até de gritar, chorar. Só quem não sabe o que é o fim de algo querido, pode ficar indiferente a uma situação destas. No entanto, quase todos ficaram porque não são capazes de sentir empatia.

Esta situação tem aspectos análogos à ida de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia. No entanto, a “coisificação” de Barroso sempre foi pela negativa. Nas centenas de comentários, em televisões, jornais, blogs, sinto que há sobretudo desorientação dos comentadores. Na verdade, tal como Barroso, também eles foram apanhados desprevenidos, mas a necessidade de dizer algo “brihante” impera. Mas quase todos se repetem, fazem analogias, traçam cenários, criticam alternativas, lançam débeis sugestões.

Mas será possível “descoisificar” Durão Barroso? Tentemos. Acredito que o ainda primeiro-ministro acreditou sempre em levar a legislatura até ao fim, mas face a este convite tudo se modificou. No lugar dele, haverá chances de recusar? Eu nem pensaria duas vezes. Não pelo lugar que irá ocupar mas sobretudo por ser uma oportunidade única de fugir do inferno que é tentar governar Portugal.

Claro que quebrar uma promessa é sempre difícil, especialmente passado tão pouco tempo de a reafirmar. Será sempre uma fuga, será sempre comparada com a de Guterres, e mais ainda por este último já ter recusado este cargo anteriormente. Claro que as situações são diferentes. Barroso sai quando a economia, finalmente, parece dar mostrar de recuperar. Guterres saiu, de fininho, por saber que o barco estava a afundar. Mas a ”coisificação” ajuda a complicar.

Mas que razões tão fortes haverá para Barroso deixar o país? Começa logo por deixar de ouvir diariamente uma data de insultos e de notícias provocatórias de uma imprensa “bloquista”. Termina também o calvário de tentar fazer algo e existirem sempre forças de bloqueio (partidos, sindicatos, imprensa, “ecologistas”, câmaras, juntas). Depois, livra-se do seu próprio partido, que já dá mostras de cansaço, de querer virar costas à luta e de ansiar pelo populismo e distribuição fácil de dinheiro – e num cenário destes pensar em reformas ousadas e de necessidade extrema é pura fantasia, porque ninguém se quer meter nelas. Livra-se também da convivência com Paulo Portas, porque mesmo acreditando que ambos se esforçam por tudo correr com a máxima cordialidade, existiu sempre alguma tensão latente. Mais razões seriam fáceis de acrescentar, nomeadamente as que envolvem a sua família, que em termos emocionais nada devem beneficiar de terem o “primeiro” entre eles.

E finalmente Durão concordará com Guterres e saberá que é óptimo deixar este pântano. Irá substituir um Prodi com fama de pouco enérgico e sem carisma, sendo bastante fácil conseguir fazer muito melhor. Irá estar mais próximo de onde se tratam das grandes decisões. E até sentirá a vaidade de saber que o viram como a melhor alternativa para sair do impasse europeu.

Tal como a atitude de Figo após ser substituído, a fuga de Barroso poderá não ser a melhor decisão, nem a mais corajosa. Mas ambos foram humanos e por isso consigo sentir alguma empatia por eles nestes momentos.