quarta-feira, junho 23, 2004

“Confunditismo”


Por vezes penso que a “arte” de atirar areia para os olhos é da mais antigas que há. Muito cedo, o homem primevo deve ter sentido prazer na aldrabice, no fazer dos outros idiotas e ser ele também um.

Dito desta forma, parece que nada positivo há nisto. No entanto, o humor baseia-se muito nesta prática, de criar uma situação sem pés nem cabeça em que todos são um pouco idiotas. Tudo se mantém saudável se a “encenação” for de curta duração e revelada como tal.

Mas o que acontece quando se perde o sentido de humor? É minha ideia que a perca do sentido de humor não implica a extinção das situações “idiotas”. Digamos que o impulso original para a “palhaçada” se mantém. A tragédia é as pessoas deixarem de ver a realidade tal como ela é – passam a levar tudo com demasiada seriedade. Dito de outra forma, estas pessoas continuam a criar situações idiotas mas perdem a capacidade de as reconhecer dessa forma, iludindo-se, pensando que tudo tem a sua lógica.

Este meu preâmbulo foi motivado pela observação de um tipo de comportamento que me parece estar em expansão. Vejo recentemente uma tendência para pessoas fazerem as coisas mais estúpidas e dizer as maiores barbaridades, e logo de seguida rematarem: «Mas eu não sou hipócrita! Não sou como os outros que dizem uma coisa e pensam noutra!»

Chamo a este comportamento de “confunditismo”, um neologismo que certamente terá vida curta mas prática longa. Defino, provisoriamente, confunditismo como o acto de justificar comportamentos estúpidos e aberrantes lançando confusão. Não se trata de uma justificação lógica mas emocional. Quem usa o confunditismo não pretendo ser compreendido (aliás, isso é a última coisa que quer), mas sim causar um desequilíbrio emocional nos outros, por forma a criar uma adesão, quase conversão, aos seus comportamentos. Se isso não for possível, então o objectivo é acabar com qualquer tentativa de contestação ou mesmo de interpolação.

Mas vejamos o caso concreto que referi, e constatemos como é engenhoso. Antes demais, o confunditismo não começa com a justificação de uma acto repugnante, mas sim no início do próprio acto. Porque é o próprio Sujeito “Confunditivo” (SC) que começa por estar confuso. Mas está emerso numa confusão activa, criativa, apesar de muito mal direccionada.

Acções típicas do SC são a verbalização sonora de mensagens de ódio (contra países, raças, partidos, clubes, etc.). Fazendo-o de forma sonora, já causa em si alguma tensão em quem ouve. Supondo que o ouvinte é um Sujeito com “Bons Princípios” (SBP), ficará com a tentação ou de ignorar ou de responder à letra. Mas sabe que neste último caso, é muito possível que a tensão suba a níveis demasiado elevados. Para evitar isso, é provável que responda de forma frouxa, ambígua ou até finja concordar. Claro que esta lassidão é um incentivo para o SC, que aproveita para esticar a corda. Até aqui, pouca diferença há em relação ao comportamento de um vulgo grunho.

Contudo, talvez por alguma réstia de moralidade (que pode ser despertada por algo que o SBP disse), o SC sente necessidade de justificar as suas acções. É aqui que aparece a referência à hipocrisia. E é feita de forma brilhante, porque não se trata de uma acusação explícita. Se o fosse causaria uma repulsa no SBP, que deixaria de ser tão compreensivo. Dizer «Eu não sou hipócrita», é uma manifestação de moralidade, aparentemente voltada para si mesmo. Mas o efeito é colocar o SBP entre a espada e a parede. Trata-se de uma falácia emocional, em que o SBP sente que se não concordar com as barbaridades ditas pelo SC passa a ser hipócrita. A tentação do SBP cair nesta ilógica é ainda reforçada por inicialmente ter respondido de forma débil. Assim, é até possível que o SBP se convença que sempre partilhou das mesmas ideias que o SC - e aqui dá-se a adesão/conversão, tornando-se o SBP num SC.

Felizmente que todos nem todos temos “bons princípios”, e é sempre possível dar algum valor à verdade. No entanto, o mais provável é que um SC encontre outro SC, ambos com o processo de cristalização já consolidado. Podem partilhar de ideias semelhantes ou opostas. Conforme o caso, tem-se a consonância absoluta ou o diálogo de surdos – mas trata-se, na essência, da mesma coisa.

Por isso, perder o sentido de humor pode ser bem mais grave do que se pensa, porque se perde também a noção do real. Desconfiem de quem não tem um sorriso sincero.