quarta-feira, novembro 24, 2004

O fim da evangelização

Cada um encontra aquilo que procura. É algo que se costuma dizer com frequência. Não só aos fracos de espírito isso acontece. Sabe-se que em trabalhos académicos o mesmo é frequente e, anos mais tarde, evidente. É provavelmente neste espírito, aproximadamente, que me encontro. Uma tendência que vejo ocorrer em mim vou transportá-la para a sociedade, dizendo que ela acontece é na sociedade actualmente.

Essa tendência chamo, em termos mais latos, o fim da evangelização. É algo mais abrangente que a saturação de paternalismo. O paternalismo é quase uma situação de estado, entre instituições ou países. Dos grandes para os pequenos, dos ricos para os pobres, dos antigos para os novos, dos pretensamente cultos para os pretensamente ignorantes. Com a separação da religião do estado, o paternalismo veio substituir os valores morais por valores lógicos e civilizacionais (democracia, liberdade, igualdade). Não é meu intento divagar sobre este paternalismo, que é questão complexa, mas penso que não seja uma forma eficaz de inculcar certos valores numa sociedade, que não os tem, com discursos de arrogante superioridade. São fenómenos complexos, morosos, erráticos e perfeitamente reversíveis (veja-se o caso da Europa, que certamente não está num processo de aprofundamento democrático e muito menos de consolidação da liberdade).

A evangelização de que falo não é, aparentemente, de carácter religioso. Mas o vazio que deixou a religião, pode ter sido aproveitado um pouco por todos nós para nos evangelizarmos mutuamente. É preciso fazer um pequeno parêntesis sobre o tal vazio deixado pela igrejas. Finalmente as igrejas começam a funcionar de forma minimamente ética, e os seus fiéis são mesmo aqueles que em consciência decidem aderir à congregação. Portanto, este vazio é algo que devia ter sempre existido, não é nenhum mal em si. É o vazio que permite cada um ser livre.

Mas como é essa evangelização entre iguais? É esta mania de estarmos sempre a dizer coisas como: “não deves comer isso”, “deves fazer exercício”, “isso faz muito bem”, “tem calma”. Mas também é a evangelização mais refinada dos argumentos políticos, da promoção de práticas esotéricas, de uma vida interior profunda, daquilo que é “correcto”. No fundo, é a atitude que temos para os outros de nos colocarmos na posição de sabermos o que é melhor para eles e para o mundo. Sinto que estes atestados de menoridade que passamos constantemente uns aos outros com um repúdio crescente. E há duas razões, quanto a mim, para isso.

Uma, é uma questão de princípio, do simples respeitar da liberdade de cada um. Claro que as pessoas devem ser informadas, as crianças educadas, preocupamo-nos com a saúde dos amigos e essas coisas todas. Não é o que está em causa. Quando alguém diz a outra pessoa que fumar prejudica a saúde não está a informar de nada que ela não saiba, por isso não transformemos a excepção à regra.

A outra razão é de respeito à verdade. Fazer exercício é benéfico à saúde? Pode e não pode, depende de como é feito, da quantidade, da saúde de cada um. E sobre a alimentação, vamos ser fundamentalistas, comer umas batatas fritas causa enfarte? Comida vegetariana é isenta de defeitos? Sobre tantas questão, as repostas são complexas, dependem de tantos factores que dar conselhos pode ser um disparate. E estou a pensar em questões onde há um conhecimento objectivo, por vezes de ciência feita. Se passarmos a questões de outro âmbito, políticas, sobre a espiritualidade de cada um, então o cuidado ainda devia ser maior. Mas acontece exactamente o oposto. Não hesitamos em dar opiniões definitivas sobre questões que sabemos tão pouco, sem grande preocupação em analisar os factos.

Bem, nem tudo é negativo. Penso que a internet e a facilidade ao seu acesso, possam tornar este hábito evangélico anacrónico. É muito fácil encontrar na internet informação sobre qualquer coisa, não precisamos de alma superior a nos guiar constantemente. Claro que o problema é que temos tanta informação que é preciso saber geri-la. Mas as pessoas têm de aprender a viver com a sua liberdade. Eu disse isto? Acabei de fazer um pouco de evangelização.