sexta-feira, novembro 05, 2004

"COMPRO, LOGO EXISTO..."

Na estação de Entrecampos, em Lisboa, encontra-se escrita a expressão acima, tentando reinventar Descartes. Para além de Descartes estar fundamentalmente errado, como mostrou António Damásio, a frase está eivada de uma ingenuidade que não é muito aparente. Milhares de pessoas por dia passam no local, sendo obrigadas a ler algo que lhes tenta abrir a consciência e tomarem uma atitude crítica. É precisamente isso que eu estou a fazer, exercendo a minha atitude crítica.Pode-se ver aqui dois níveis de crítica, pessoal e ao nível do sistema.

Pessoalmente critica-se o consumismo de cada um de nós, nas opções pessoais que fazemos. Basta ir a um hipermercado ou a um centro comercial para ver as imensas escolhas disparatadas feitas pelas pessoas. Compra-se o acessório, muitas vezes com o dinheiro que não se tem. Mas quem, nos dias de hoje, pode se arrogar de decidir o que está certo ou errado para os outros? Vamos negar aos outros o direito de errar, de serem estúpidos, fúteis? E quem sabe se coisas que achamos fúteis agora não iremos achar importantes daqui a algum tempo? Acima de tudo, é uma atitude que mostra desrespeito pela liberdade individual. As decisões das pessoas surgem devido a uma miríade de factores, e é mais fácil criticar do que tentar compreender.

Mas depois temos a crítica ao sistema, ao "capitalismo", à economia de mercado. Devo dizer que estas críticas são bastante naturais e sempre o serão. Porque é certo que a economia de mercado é mesmo algo que nunca esteve presente durante os milhões de anos de evolução. O ser humano evoluiu apenas com três formas de distribuir os bens/recursos. A forma mais óbvia é a distribuição pela força. Em várias espécies, os machos e fêmeas Alfa impõem a sua vontade enquanto podem, e isso ainda acontece assim em alguns grupos humanos. Não se pense que isto é apenas um anacronismo de pessoas incivilizadas. Basta pensar que se os pais não tiverem o mínimo de autoridade sobre os filhos, seria o caos.

Outra forma de distribuição é a partilha. Simplesmente, quem tem mais do que aquilo que pode consumir, pode partilhar. De início, o que não era consumido era desperdiçado. Em vez de lutar continuamente por cada migalha, uma atitude mais inteligente é partilhar, mesmo que por vezes fiquemos apenas com uma parte daquilo que poderíamos obter. Revela isto uma atitude superior às distribuição por simples imposição.Outra atitude é a distribuição comunitária. À boa maneira comunista, cada um dá na medida das suas possibilidades e cada um recebe mediante as suas necessidades. É, certamente, uma atitude superior. Mas para ela ocorrer só há duas possibilidades. Ou as pessoas são perfeitas, livres de ego e de defeitos. Ou então, o grupo encontra-se num estado especial, de um enamoramento colectivo, em que tudo se torna possível e parece extraordinário. Estas experiências, quase religiosas, sempre aconteceram, não tendo sido inventadas pelos marxistas. No entanto, a sua aplicação entre grupos de desconhecidos nunca foi observada.

E é com os contactos entre desconhecidos que aparece o quarto meio de partilha, que é o mercado. E será economia de mercado sinónimo de capitalismo? Claramente não. Capitalismo fundamenta-se na liberdade individual e na detenção dos meios de produção por privados, com uma reduzida intervenção do estado. O mercado já existia muito antes de terem sido enunciadas as bases teóricas do capitalismo. O que acontece é que se chama capitalismo a uma mescla de várias coisas. Convive capitalismo com intervencionismo, proteccionismo, imperialismo, socialismo... O jovem que crítica o mercado, está revoltado exactamente contra quê?

Antes de ser uma questão ideológica, é algo profundamente emocional. A nossa natureza está preparada para ver imposição, partilha e comunismo mas a realidade dos grandes números é incompatível com essas formas arcaicas de interacção. Por outro lado, poderá existir a sociedade liberal pura, que ignora as formas arcaicas? Penso que estão condenadas a coexistir, mas não da forma como actualmente acontece. Agora temos o conflito, esferas que colidem. Se as formas arcaicas acontecem intuitivamente, o mercado implica a utilização do necortex.

Está dentro de nós a tentação de querer resolver as coisas com mão forte ou com soluções enamoradas (comunismo). No fundo, as utopias mais não são do que um voltar ao passado com as pessoas do futuro. Mas o passado era dos pequenos números, as soluções já não resultam. A solução do mercado não é intuitiva. O liberalismo clássico recusa o "cérebro central", afirmando que as melhores soluções saem de uma miríade de interacções humanas, mesmo que muitas sejam contraditórias e antagónicas. Contudo, mesmo os políticos que afirmam acreditar no poder da liberdade, quando em comando não resistem à tentação de puxar demasiado as rédeas.