A tradição
A tradição já não é o que era, pensaram os profissionais de marketing para uma marca de Whisky, e acabaram por descrever o lema de uma geração perdida, que pensou encontrar-se no estertor da sua irresponsabilidade. Gerações sufocadas por regimes castradores e de costumes impositivos respiraram a liberdade e acharam que podiam esquecer tudo o que era antigo, apenas a novidade era válida e digna de apreço. Contudo, após terem ganho a sua liberdade política, os indivíduos acharam que a libertação pessoal e por acréscimo a felicidade, era uma consequência inevitável. Não tinham que batalhar para conseguir algo, bastava que lhes tivessem retirado os grilhões do passado.
As pessoas sentem-se perdidas e nem percebem porquê. Olham para trás e vêm a tradição, que detestam porque acham que foi uma solução que o passado provou que não dava resultado. Ou então pensam que simplesmente é coisa morta e impossível de se retornar. A hipótese é a fuga para a frente, ir de encontro a algo que não está cá, a salvação que vem de fora em filosofias exóticas, em novas descobertas científicas, em práticas esotéricas, em ideologias políticas.
O indivíduo não se apercebe que mesmo tendo rejeitado a tradição ainda a segue em grande parte nos mais corriqueiros gestos. Coisas menores, pensar-se-á. Nas grandes opções de vida, as opções tradicionais têm um odioso em cima, casar, ter uma religião, educar os filhos. Antes de rejeitar tudo o que são os modos tradicionais será bom pensar na sua génese. Associamos a tradição sempre ao passado, a algo que sempre existiu e que não tem grande justificação. Contudo, no início de tudo não havia qualquer tradição. Passado algum tempo as sociedades já albergavam em si um conjunto de tradições que regulavam diversos aspectos da vida. Se avançarmos alguns séculos veremos que o conjunto de tradições alargou-se, se as sociedades ficaram mais complexas, mas que muitas das tradições anteriores já não existem ou estão bastante alteradas.
Por vermos as coisas numa escala temporal reduzida, muito egocentricamente dentro do nosso tempo de vida, pensamos que a tradição é coisa imutável. As tradições são em grande parte construções espontâneas dos indivíduos, sem uma inteligência superior a revelá-las. Por vezes, religiões e sistemas políticos cristalizam determinadas tradições já existentes e dão a aparência de terem sido eles a criá-las. Mas mesmo neste caso, não se deve partir do princípio que a tradição só existe porque é imposta. As tradições existem porque deram provas da sua validade em determinado contexto. Grande parte das tradições foram, em determinada altura, inovações.
Isto não quer dizer que a tradição não possa ter aspectos muito errados e altamente perversos. Mas se é assim, estão criadas condições sociais para que ela seja alterada. Devemos ser particularmente críticos para aqueles que impedem que as tradições se criem e desfaçam naturalmente, dentro de um quadro mínimo de valores instituídos. E como rejeita a sociedade uma tradição? Não o faz toda de uma vez, há sempre indivíduos que seguem à frente, que podem falhar rotundamente. É também uma questão de risco. Uma tradição insatisfatória mas que resulta pode ser substituída por uma muito melhor ou por outra que não resulte de todo. Há avanços, refluxos e muita incerteza. Por vezes tem que se começar quase tudo do zero, quando uma civilização é invadida e quase totalmente destruída ou quando opta por um regime revolucionário que tenta construir a sociedade perfeita de raiz.
E depois há alturas como a nossa, em que se rejeitou a tradição mas não se propôs nenhuma alternativa. Ou melhor, há muitas alternativas mas são sempre numa espiral facilitista que conduz a um niilismo profundo. A tradição começa, então, a ser rejeitada porque parece demasiado austera. Certamente algumas tradições o eram, mas criou-se a ilusão que se pode ter tudo sem fazer o mínimo esforço e muitas das críticas à tradição mais não são que um desculpar da preguiça e da cobardia. Paradoxalmente, este modo de vida sem desafios tornou-se o mais cansativo de todos e nitidamente as pessoas estão fartas do que são e do que as rodeia. Pensam, no entanto, que apenas ainda não tiveram a sorte de descobrir o truque que lhes irá dar a chave para o sucesso.
Que alternativas pode haver? Voltar, por desespero às antigas tradições? Pode nem ser viável porque algumas das condições estruturais já foram eliminadas. Além de que não tem sentido insistir em alguns erros do passado. Há que conhecer, primeiro que tudo, só depois decidir. Há que reconstruir as bases, transformar o que não funciona e voltarmos a nos abrir ao mundo de forma decidida, não como agora que vemos o exterior com desconfiança ou como salvação. A única solução que nos resta é tornar a vida mais difícil e criar desafios que agora nos parecem insuperáveis.
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