quarta-feira, dezembro 10, 2003

Profissionais do Ódio (2)


É com muita facilidade que se criticam épocas e costumes passados, fazendo muitas vezes comparação com o nosso tempo. Esquecemo-nos quase sempre que também nós seremos postos à prova, e muitos dos nossos modos serão classificados, no futuro, como ridículos, bárbaros e imbecis. Será esta uma fatalidade da humanidade, em que a evolução constante das sociedades irá sempre condenar o passado? Estou em crer que não. A ideia de progresso social e tecnológico pode ser bela, mas acaba muitas vezes por consistir numa fuga colectiva. A fuga de nós próprios. Porque o progresso social e tecnológico só têm sentido se apoiados no progresso individual. Caso contrário, o indivíduo sente-se perdido e esmagado pelo mundo que se transforma “à sua volta”.

Em relação ao progresso social, a política é o campo que mais destaque lhe dá, pelo menos em palavras. Diferentes e por vezes antagónicas concepções de sociedade, prometem-nos um mundo melhor. Mas as promessas de progresso escondem concepções que, elas próprias, muito pouco progrediram. As ideias que nos “vendem” não são muito diferentes daquelas que eram vendidas à décadas ou séculos atrás. A preponderância que ainda se dá à distinção entre esquerda e direita, conceitos que não se baseiam em nada de universal, revela a falta de criatividade, adaptação e mesmo coragem de fazer diferente. As evoluções que se dão são mais concessões à realidade. Mas que realidade? Aquela do mais estúpido e egoísta. Acontece um paradoxo. Por um lado, cada vez mais se criticam os políticos, mesmo pelas mínimas faltas. Por outro, passou a aceitar-se a actuação política que temos como normal e sem alternativa.

Os governos são especiais alvos de crítica fácil. Qualquer decisão que se tome, mesmo a mais básica, tem vantagens e desvantagens. Um governo em consciência tomará as decisões que forem mais urgentes, que tenham mais vantagens que desvantagens e ainda que possam ser um bom compromisso entre os objectivos a curto e a longo prazo. Se decidir bem já é difícil, implementar as decisões ainda mais difícil se torna quando se têm estruturas pesadas e avessas à mudança. É um campo particularmente fértil para os Profissionais do Ódio, que podem explorar sempre qualquer desvantagem.

A actuação política que temos consiste em termos uma oposição, seja de direita ou esquerda, que apenas tenta ser obstrução. E para mostrarem força, utilizam o ódio. É certo que os ódios do PSD, PS e CDS são fingidos, ao contrário dos apresentados pelo PCP e BE, mas os efeitos não são muito diferentes. O principal resultado é que o cidadão deixa de ver a política como um instrumento de realizar coisas mas apenas um campo de batalha, em que apenas interessa derrotar os adversários, seja a que preço for. Temos que admitir que, para quem tem convicções, esta luta é muito estimulante, com toda a troca de insultos, notícias de jornais verdadeiras ou falsas, manifestações, greves, boicotes, inaugurações, discursos, jantares de apoio, comícios, campanhas eleitorais.

É muito fácil criticar os políticos, eles até se colocam a jeito para isso. Mas olhemos para nós e interroguemo-mos se não somos as bestas que carregam este fardo? Porque não queremos um governo que seja corajoso, que tome medidas de fundo, que pense a longo prazo. O que queremos são obras de fachada, inaugurações, dinheiro fácil. E da oposição não queremos alternativas, ideias, cooperação crítica mas construtiva. Queremos apenas ódio, jogos de palavras, demagogia. Tal como os romanos que se juntavam no coliseu para assistir a lutas sangrentas, também nós gostamos de assistir a lutas políticas, menos sangrentos mas talvez ainda menos civilizadas.