Arte e ciência não são irmãs
Sempre achei que a arte e a ciência são duas formas de utilizar a imaginação e, por isso, deviam ter tido uma origem comum. Com a crescente especialização, deixou de ser possível a alguém poder dedicar-se às duas de forma empenhada, como no caso de Leonardo da Vinci. Mais estranho ainda, os dois campos começaram antagonizar-se, pelo menos no que diz respeito a um certo imaginário popular.
Como estou com uma dor de cabeça, comecei a pensar no que fariam os primeiros homens para lutar contra ela, sem quaisquer medicamentos. E cheguei à hipótese de que a ciência tinha nascido da dor e do desespero para a tentar fazer parar. Claro que se pode argumentar que tudo adviria, pelo contrário, de uma tendência natural de melhorar as condições de vida, criando melhores habitações, ferramentas, armas, protecções, etc. Mas acho que isto não é o suficiente para dar origem a algo tão poderoso como a ciência. E a minha proposta é que tudo veio da luta desesperada contra a dor, tanto nossa como de alguém que amamos em bruto.
Essa luta pode ter começado apenas com umas lambidelas no local magoado, depois exercendo pressões com os dedos. Mas quando o que dói é por dentro, o que fazer? Engolir algumas ervas deu resultado. E se deu, que tal experimentar mastigar essas ervas e colocar sobre uma ferida. Mas há perigo. Porque há coisas que curam e outras que matam. E outras curam e matam, dependendo da dose. Gerir isto implica raciocinar, utilizar alguma lógica elementar, classificar, decidir, escolher, ponderar, arriscar e ter rigor. E depois, este saber essencial não se pode perder, há que transmiti-lo. E fica a invenção de alguma memória colectiva. Tudo isto permitiu criar um tipo de intelecto mais desenvolvido, que depois se poderia aplicar a quase tudo.
E como terá nascido a arte? Parece-me que a raiz terá sido diferente. A minha segunda hipótese diz que nasceu dos estados de espírito. Da alegria, do sofrimento psicológico, da revolta, da raiva, do espanto, do medo – mas será que nasceu de uma dor de cabeça, de um pé partido, de um braço estilhaçado? Acho que não. Só mais recentemente a arte pode ter invadido estes domínios. A arte fluirá de forma distinta. Se a ciência nasceu para resolver algo, pelo menos de início (em certa altura a ciência passou a ser uma forma de satisfazer a curiosidade sobre o mundo, independente de servir para alguma coisa), já a arte não tem qualquer objectivo a não ser a expressão de um estado de espírito (e agora de servir de terapia a alguns jovens).
Talvez hoje em dia arte e ciência tenham convergido. A suas tremendas evoluções fazem com se tenha de adquirir uma base prévia, que é a técnica. O pianista antes de ser intérprete passou anos com exercícios, repetindo-os vezes sem conta. O compositor antes de escrever a sua sinfonia também teve de aprender toda a teoria e as técnicas de composição. Da mesma forma, o cientista antes de se envolver na descoberta dos mistérios da natureza passou anos apreendendo várias técnicas de suporte. De certa forma, arte e ciência perderam a sua naturalidade, passaram a ser processos demasiado mentais, pouco expontâneos. Talvez por isso haja sempre a necessidade da fuga para a frente, de descobrir algo de novo, de inovar, de revolucionar.
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