terça-feira, dezembro 14, 2004

Questões de honra


A honra é algo tão fora de moda que, não padecesse eu de algum distúrbio da personalidade, fui confirmar se tal palavra existe mesmo. O dicionário On-line da Texto Editora diz que sim, mas deixou-me estupefacto. Porque para além de ditar como seus sinónimos honestidade e dignidade, começa logo por dizer que honra é “sentimento que leva o homem a procurar merecer e manter a consideração pública”.

Quando a consciência do cidadão médio aumenta o seu nível, seria de esperar que ele tivesse um comportamento mais adequado, coerente e positivo. Por exemplo, não há muitos anos, para quase todos, o Estado era algo abstracto, desligado da realidade mundana, que fazia sentir a sua mão fria em certas ocasiões. O Estado era um pai de todos, um saco sem fundo de onde tudo de devia extrair e, se possível, nada dar em troca.

Vejo várias razões para isto, desde logo a nossa concepção cultural cristã que insiste em ver a salvação como algo exterior a nós, mas também certas peculiaridades portuguesas. Não nos esqueçamos que durante alturas importantes da nossa História, boa parte dos orçamentos dos reinos eram provindos do exterior (ouro do Brasil, remessas dos emigrantes e tantas outros paliativos...). Nem o Salazarismo nem a integração europeia fizeram muito para mudar tais perspectivas.

Mas sinto que hoje em dia, boa parte da população já se apercebe que o estado é algo bem real, algo que só existe porque assim o constituem. Que sacanear o estado é sacanear todos um pouco. Mas este acréscimo de consciência não nos tornou mais éticos. E porquê? Simplesmente, acho, porque não temos honra. Quanto mais sacarmos melhor. Estou a condenar as próximas gerações? E isso havia de me preocupar porquê?

Vejamos esta questão de Jorge Sampaio ter dissolvido a Assembleia da República. Toda a forma como a situação é vista pelas pessoas é sintoma de que já demos um pontapé forte à honra, para que ela não se metesse “onde não é chamada”. Basicamente, pode-se dizer que se trata de uma questão de xenofobia política. Santana Lopes causa repulsa a muita gente e havia que correr com ele de qualquer forma.

Tudo começa quando a essência transmudasse em mero formalismo irrelevante. A essência é que a nossa democracia é indirecta, não escolhe directamente o Primeiro Ministro. A essência é que, mais importante que algum homem providencial, são as políticas que um grupo (normalmente partido ou grupo de partidos) apresenta. A essência é que a atenção calma mas crítica devia prevalecer sobre emoções ditadas por vontades irreflectidas. No entanto, esta essência é desprezada e passa a acessório, a mero formalismo a que ninguém liga, isto quando ainda existe.

Sendo assim, escolhe-se um homem que possa salvar a situação, e como tal, se esse homem muda a meio, as pessoas sentem-se enganadas, não era Santana Lopes quem elas queriam. É a necessidade de procurar um pai. Será que as pessoas se apercebem do ridículo da situação, do ar de debilidade emocional que dão? São os próprios partidos que promovem tal coisa, eles escolhem os candidatos a Pais da nação. E será caso para dizer que Santana Lopes é a principal vítima do sistema que tanto gosta de utilizar para seu benefício.

Do pouco que vi do congresso do PSD, lembro-me dos rasgados elogios que Santana Lopes fez ao Presidente da República, num momento em que todos foram unânimes em aplaudir a figura máxima da nação. De pouco valeu, porque tal rebaixamento hipócrita não produziu os resultados esperados. Mas mais que isso, foi um gesto em que sempre se confundiu a figura do Presidente da República com a pessoa que exerce o cargo. Tal separação pode fazer pouco sentido para crianças que ainda não tenham capacidade de pensar abstractamente, mas para pessoas adultas é um insulto à inteligência. E quem deixa-se assim violar não tem honra, seguramente.

Mas isto são apenas pequenos exemplos. Em quase todos os domínios perdeu-se o pudor, mente-se descaradamente e defendem-se as posições mais abjectas. Voltando ao início, o “sentimento que leva o homem a procurar merecer e manter a consideração pública” já não é a honra. Porque para ter consideração pública já não é necessário ser honesto e digno. Talvez até a honra seja algo que atrapalha. Admirados são os que humilham os mais fracos, os que insultam facilmente, os que apelam à inveja, os que não dizem coisa com coisa, os que brilham por nada saberem fazer. Fomos dar em pessoas que se contentam em sermos uns filhos da puta uns para os outros, mascarando tudo com uma hipocrisia apaziguadora. A honra, tal como a armadura de um soldado da antiguidade, passou a ser uma peça de museu.