O crítico adolescente
Uma ministra teve um lapso jurisdicional, por ignorar que não se podia fazer a distinção entre os tribunais das regiões autónomas e os continentais. Esta ignorância, que também era a minha, tem o perigo de cair no ridículo, como se a ministra tivesse dito que os Açores não fazem parte de Portugal. Mesmo esta última, é uma gafe comum. Contudo, penso que se faz demasiado barulho por coisas de menor importância. Boa parte do esforço crítico dos portugueses está direccionado para descobrir lapsos de linguagem, trapalhadas e questões menores de estilo.
Criou-se um modelo que políticos, bem como outras figuras públicas, devem ter. O conteúdo é preterido em função do estilo. Bem sei que todos gostamos de rir das “calinadas” dos famosos, um remanescente da mesquinhez que temos em adolescentes, quando queremos afirmar-nos no mundo, ao mesmo tempo que o mínimo pormenor é motivo de um escárnio sem fim. É curioso que muitas pessoas, que nas suas relações pessoais são bastante cordiais e não perdem tempo com futilidades, em relação a poderosos e famosos voltam a ter recaídas de adolescente.
Em termos nacionais, o evento mais significativo dentro deste âmbito que vi nos últimos anos, aconteceu com Guterres há uns anos atrás, em campanha eleitoral. Questionado sobre uns números, Guterres começou a fazer contas de cabeça. As contas eram elementares mas Guterres não as conseguiu fazer e durante uns segundos caiu numa situação insólita e caricata. Um programa de TV, A Noite da Má Lingua, chegou a dar-lhe um prémio por isso. Guterres recebeu desportivamente o troféu. Na altura a situação pareceu-me divertida e achei natural que durantes alguns dias fosse um comentário frequente entre as pessoas.
Contudo, o escárnio à volta deste evento durou muito mais. Durante meses a situação era parodiada um pouco por todo o lado. Tornava-se na gracinha favorito dos portugueses. Comecei a achar estranho este comportamento, que não podia estar relacionado apenas com o facto em si. Quantas vezes não nos aconteceu já termos momentos em que não conseguimos fazer as coisas mais elementares? O que é dramático nisto tudo foi as horas sem fim que os portugueses perderam a fazer escárnio por uma coisa insignificante, mas ao mesmo tempo tinham uma complacência sem fim para a desastrosa governação de Guterres.
Uns anos mais tarde era Durão Barroso parodiado como “O Cherne”, depois Santana Lopes colocado a ridículo se trocava as páginas de um discurso ou Paulo Portas fazia uma cara de admiração em directo. Não me choca que estes incidentes sejam motivo de reacção exageradas, sei que a natureza humana não é perfeita. Contudo, a partir do momento em que o nosso espírito crítico se restringe a estas coisas menores, surgem daí efeitos perversos. Abrem-se as portas aos políticos cada vez mais demagogos, que podem dizer enormidades mas as digam em tom convincente, que sejam nulos em termos de conteúdo mas eficazes em termos de imagem. E não são pessoas como estas que precisamos numa altura de crise.
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