terça-feira, abril 17, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (X)

O MAL

A maior parte das religiões têm duas vertentes. Uma exterior, voltada para as celebrações, que ajudou a estabelecer os ritmos das sociedades e ritualizou os momentos fundamentais (nascimento, iniciação, casamento e morte). Opto ainda por colocar na vertente exterior os actos que pedem a protecção divina. Depois, existe a parte interior da religiosidade, onde é necessário ir para além da mera crença e do cumprimento das regras. Aqui o indivíduo tem de aprende a «escutar-se a si mesmo» e a crença, a existir, já não é em algo facilmente catalogável, será num Deus que se define por aquilo que «não é» ou pela nossa natureza pura e original a que não temos acesso directo até nos realizarmos. Entra-se no reino dos mistérios e da entrega sem saber o que nos espera e, de preferência, sem nada esperar.

Tornou-se politicamente correcto dizer que a prática interior das religiões não é, na verdade, religião mas filosofia de vida. E para o comprovar há relatos de acontecimentos em que os mestres ousavam quebrar regras e, até mesmo, ter um comportamento anti-social. Enquanto a parte exterior da religião dedica-se à distinção simplista entre bem e mal, a parte interna está para além do bem e do mal. É evidente que isto torna-se apelativo para aqueles que, procurando uma dimensão mais profunda para as suas existências, não abdicam de uma liberdade irresponsável. Acham mesmo que a entrada nos níveis mais profundos da espiritualidade só é possível renegando a religiosidade exterior. Confundem, portanto, repúdio com transcendência.

Esta espiritualidade “Paulo Coelho” tem dois problemas. O primeiro, óbvio, é a selecção apenas dos trechos mais fáceis de compreender e de colocar em prática, ficando de forma os assuntos mais complexos e penosos de executar. Outro problema é a remoção do contexto, onde não se percebe que certas atitudes insólitas foram estratagemas pontuais para atingir determinados fins e não a regra. O contexto que se deve assumir é o da religiosidade exterior, este é o pressuposto. A parte mais profunda da religiosidade só é possível construir com base na religiosidade exterior. Esta base não necessita ser uma religiosidade explícita mas, pelo menos, um conjunto de valores essenciais, entre os quais o bem e o mal.

As referências ao mal causam aversão a muitas pessoas, e com alguma justificação. Parte da destruição da Igreja Católica ocorreu por dentro, pelos padres que durante gerações que não souberam fazer uma hierarquia dos vários níveis de mal e se dedicaram a vociferar contra a sexualidade e outros costumes, sem mostrarem qualquer compaixão. Ora, isto não só provocou fortes anti-corpos na sociedade como é uma adulteração do próprio cristianismo. O problema é que esta rejeição, compreensível, levou a rejeitar qualquer noção de mal, criando um terreno fértil para o relativismo absoluto.

O próprio «mal» tornou-se confuso, por vezes tomado como uma essência maléfica pronta a encarnar nas pessoas, que se adapta a produções cinematográficas. Ora, o «mal» mais não é que uma atitude que nos coloca fora de harmonia com o que nos rodeia e com nós mesmos. As religiões dão-nos pistas para isso mas, em última análise, é preciso recorrer à consciência pessoal porque é impossível saber até que ponto os sacerdotes estão ou não corrompidos. Mas renegar ao conceito de «mal» é negar a própria consciência pessoal.

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