quarta-feira, março 21, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (VIII)

A VERDADE


O que é a verdade? Uma pesquisa elementar revela uma vasta literatura sobre algo aparentemente tão simples. É um campo de vasta abordagem na filosofia, através da lógica, da metafísica e da epistemologia, onde nasceram várias teorias da verdade e onde filósofos famosos apresentaram as suas perspectivas. Também as religiões têm as suas concepções da verdade a tender para a transcendência. Ter uma abordagem assim difusa sobre a verdade é considerada uma experiência enriquecedora por muitos, que sentem ganhar uma consciência mais desperta sobre o que os rodeia e sobre a sua posição no mundo. Tudo isto está muito bem não fosse um pormenor. Quando se esquece a concepção de verdade mais elementar, falar das “outras verdades” é apenas uma espiral niilista.

A concepção elementar de verdade refere apenas a conformidade com os factos ou com a realidade, que Aristóteles também definiu de forma alternativa através do princípio da não contradição. Não que Aristóteles tenha criado algo completamente novo, muito antes dele já se agia de acordo com a definição de verdade que ele formalizou. Claro que as limitações da lógica aristotélica são chatas, não permitem todo o tipo de devaneios. Mas não limitam a criatividade e a intuição na produção da actividade artística de forma antinatural, como alguns querem fazer crer. A arte em si está em plena conformidade com a realidade, caso contrário seria apenas uma experiência intelectual e não uma realização viva. Ou seja, a arte em si está limitada ao possível e ao realizado.

Já as experiências puramente intelectuais tem como única limitação o concebível, ou seja, o que a mente conseguir criar. E aqui o papel da lógica aristotélica é essencial, definindo os domínios da objectividade e da validação de resultados. Este papel de triagem é por natureza restritivo. Quem almeja a consagração, o elogio, o reconhecimento do génio próprio, terá tendência para abraçar efusivamente as ideias que lhe permitem validar uma criatividade mais lata. As correntes filosóficas desenvolvidas no século XX, que tiveram em Kant um dos principais inspiradores, seguiram um caminho relativista que se presta a isso. Aquilo que a velha lógica aristotélica chamaria de “disparates sem qualquer fundamento”, é encarado pelas teorias modernistas como visões mais ricas e libertadores, inteiramente válidas.

O sucesso destas modas filosóficas, quase todas monumentais embustes intelectuais, terá várias explicações. A adesão a elas não se dá mediante o escrutínio da razão mas, antes, através da sensação de se estar a emergir num ritual iniciático. Ideias de algibeira apresentadas em linguagem propositadamente obscura provocam nos aderentes uma sensação de assombro por imaginarem que entraram num domínio especial que os faz pertencer a uma elite de notáveis. Tal como referiu Jean-François Revel, trata-se de um elitismo de massas, com inúmeros seguidores mundo fora. Certamente serão uma minoria que representa parte ínfima da população. Contudo, a sua capacidade de influência é inversamente proporcional ao seu peso demográfico e, mais grave, inversamente proporcional à qualidade das teorias que defendem.

Este poder de influência advém das funções que genericamente desempenham: professores universitários, jornalistas, comentadores de «referência», ideólogos de partidos, planificadores sociais de carreira, etc. São estas pessoas que nos mostram o que é a modernidade e até que ponto alcançava a nossa imbecilidade antes de sermos atingidos pela luz que deles emana. E se não nos rendemos às revelações que eles com tanto altruísmo nos oferecem, tal só pode constituir prova da nossa obtusa ignorância.

Aos poucos forma-se uma segunda linha de militantes anónimos, que nem se apercebem que já aderiram à causa, os chamados idiotas úteis, que já não têm o gozo iniciático dos primeiros uma vez que vieram beber a moda filosófica por osmose social e se limitam a ser peões na defesa da modernidade totalitária. O trabalho incansável que realizam já nada tem em vista, é por essência niilista. A ideologia que professam é o “já nada faz sentido” e o principal slogan “quero lá saber”. Vêm aqueles que se esforçam para atingir algum objectivo concreto como fúteis, materialistas ou iludidos. São depressivos profissionais que pretendem a todo o custo contagiar os que à sua volta se encontram.

Incrivelmente, são incapazes de reconhecer que o estado letárgico em que se encontram resultou do abraçar de teorias niilistas e auto-destrutivas. Preferem culpar a tradição, a sociedade ocidental, a religião, a racionalidade. Há toda uma vasta gama de pseudo-profissionais da saúde (ou profissionais da pseudo-saúde), psicanalistas, psicólogos e até alguns psiquiatras que confirmam a origem de todas as maleitas de que sofrem, é o stress, é o estilo de vida ocidental, é a tradição judaica-cristã, é a herança reaccionária do tempo dos pais e avós que lhes provocaram traumas indeléveis, etc. Essencialmente culpam tudo aquilo que renegaram e não lhe passa pela cabeça averiguar se as próprias escolhas dos indivíduos, derrotistas e alienadas, não tiveram qualquer contributo.

Apesar do povo ser infinitamente mais sábio que estas aberrações existenciais que nos tentam iluminar, a humildade faz com que tenham consideração pelos “doutores”. Se aqueles que são apresentados como sábios dizem que 2 mais 2 já não são 4, quem é o povo para discordar? O melhor que tem de fazer é adaptar-se aos tempos que correm, até porque uma das coisas que ouve com mais frequência é que o mundo está a mudar mais rapidamente que nunca. Poderá querer isto dizer outra coisa a não ser que o que era certo no passado inevitavelmente deve ser renegado o quanto antes?

Os “doutores” e a modernidade validam-se reciprocamente. A modernidade é válida porque o confirmam estes senhores. E estes senhores são autoridades precisamente por defenderem a modernidade. É a única noção de autoridade que ainda nos resta.

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