domingo, novembro 16, 2003

Kyoto, as Cruzadas e a hipocrisia


Kyoto, antiga capital japonesa, é uma das cidades mais belas do mundo. Os templos dourado e prateado e ainda o famoso jardim zen Ryoan-ji, são alguns dos seus locais emblemáticos. Para além destes ícones, Kyoto foge do estereótipo que se tem do Japão moderno. É uma cidade calma, de preços idênticos aos nossos, imensamente limpa e em que está patente por todo lado o imenso respeito pela natureza, numa procura pela beleza e harmonia, a que talvez não seja alheio o facto de praticamente não existirem turistas ocidentais. Por cá, Kyoto é apenas um nome de um protocolo que visa, sobretudo, a redução dos gases que provocam o efeito de estufa. Ao contrário de todos os países da comunidade europeia, a actual administração dos EUA anunciou que não iria cumprir o protocolo.

Em 1453 os turcos tomam Constantinopla, então capital do Império Romano do Oriente. Este império manteve-se onze séculos ainda após a queda de Império Romano do Ocidente, e tinha o cristianismo como religião oficial. O papa vigente pede aos reis católicos que se juntem para uma segunda vaga de Cruzadas para fazer frente a esta invasão. Em Portugal reinava D. Afonso V, um rei ingénuo, que se prontificou a enviar uma força com milhares de soldados. Aconselharam-no que esperasse, que não fosse o primeiro, porque todos os outros reis também tinham prometido entrar na nova cruzada. A hipocrisia europeia revelou-se, e ninguém cumpriu.

O Protocolo de Kyoto estipula uma redução mundial de 5,2% dos gases nocivos, especialmente de CO2, no período de 2008-2012 baseado nos níveis registrados em 1990. A União Europeia (UE) tem sido a principal dinamizadora do processo, tendo os seus 15 membros já ratificado o tratado. Mas para que o protocolo entre em vigor é necessário um grupo de países que somados dêem 55% das emissões de 1990, o que até agora não foi possível. A UE tenta convencer a Rússia a ratificar, o que já daria para ultrapassar o limiar mínimo. E assim a UE marcaria pontos, lideraria o processo de protecção ambiental. Mas não se esqueçam da hipocrisia…

O anúncio do presidente Bush em não cumprir o protocolo de Kyoto foi chocante para muitos. Os EUA são os maiores poluidores mundiais e as suas emissões de gases espalham-se numa atmosfera que sempre foi global. As notícias do financiamento da campanha de Bush por empresas como a Exon, a Esso e a Shell parece completar o quadro. Mas os EUA também alegam que o esforço que teriam que fazer se ratificassem o protocolo seria muito superior a qualquer outro país, incluindo os da UE, o que iria prejudicar bastante a sua economia. Além disso, alegam falhas no protocolo, começando pelas bases científicas, porque as alterações climáticas são o que há de mais difícil de prever. Por outro lado, referem a Índia e a China que estão de fora. Estes países não eram grandes poluidores em 1990, mas estão em vias de se tornar nos maiores. Poderiam ainda alegar que a queda da economia americana iria também arrastar outras economias, e as europeias não iriam escapar.

A posição da administração Bush acaba por ser coerente. Num programa de humor americano eles falavam no valor que prezavam acima de tudo: O dinheiro. Choca-nos esta visão, mas até pode ser mais saudável do que parece. Eles defendem a suas empresas, negócios e interesses acima de tudo. E fazem-no abertamente, e assim também os podemos criticar abertamente. A Europa aparentemente só faz algo motivada por grandes princípios e ideais. Mas esta visão purista esconde muito hipocrisia e inveja. Mas nós já temos uma grande tradição cristã de “invocar o nome de Deus em vão”. Pessoalmente, acredito que o protocolo de Kyoto só será cumprido nos países onde há uma forte consciência ambiental, que são bem poucos. Mas tudo vale como arma de arremesso nesta nova cruzada invisível. Todas as grandes catástrofes não naturais que a humanidade se defrontou sempre foram anunciadas, mas nenhuma foi evitada.


“Intelligent we may be, but as social collectives we behave churlishly and with ignorance.”

James Lovelock