quinta-feira, abril 15, 2004

Considerações papais


Desde que me lembro, a figura do papa preenche as minhas memórias. Lá está um senhor de branco, acenando com gestos suaves uma multidão reverente. Em criança pensava que o papa era uma pessoa diferente, assim uma espécie de Jesus Cristo, uma pessoa com dons especiais que mais ninguém teria. Interrogava-me se ele também comia. bebia e se iria à casa de banho... Muitas vezes achava que não, porque alguém tão puro não faria coisas destas. E nem devia ter órgãos sexuais.

Mais tarde, já convencido que os papas seriam pessoas fisicamente idênticas às demais, estranhava terem nomes como os reis, Paulo VI, Pio X, João Paulo II. Era-me estranho conciliar isso, que atribuía um estatuto de poder, com a imagem de pessoa religiosa, que nada seria mais que um guia, alguém bom e desapegado de bens materiais. Não demorou muito até saber que tinham existido papas cruéis, assassinos, que tiveram filhos e amantes e até uma papisa que dera à luz em plena rua. E afinal, o cargo do papa tinha sido muitas vezes apenas uma função de poder, a que muitos reis se submetiam e juraram fidelidade. Recentemente vi uma foto que a tudo remetia ao papa sem ele lá estar. De facto, na foto está a cadeira papal vazia, e num plano mais próximo encontra-se um cardeal numa postura de arrogância desmedida, talvez por se encontrar numa sala quase toda coberta de ouro.

O actual papa é uma figura peculiar. Tendo posições extremamente conservadoras em alguns aspectos e parecendo muitas vezes defender uma prática religiosa “intra-muros” bastante pobre e limitativa, ao mesmo tempo revela uma abertura ao exterior notável, no diálogo com outras religiões (isto apesar de alguns comentários disparatados sobre o budismo mas que se desculpam a pessoas que de aspectos espirituais nada sabem), no admitir de erros passados e do obscurantismo da igreja católica em relação à ciência, além de tanto criticar o marxismo como o capitalismo desenfreado.

João Paulo II tem vindo a substituir-se a si próprio, indo contra o desejo de muitos que não o acham em condições de desempenhar as funções. A actual imagem do papa está longe de um vigor de outros tempos, aparentando ser apenas um velho decrépito, que se baba e balbucia palavras incompreensíveis que mais fazem lembrar uma ovelha balindo. Os católicos têm vergonha do seu líder, mas pelo que sei a sua doença não afecta a sua lucidez. O problema está no tipo de liderança que se quer. Se for liderança espiritual, então não será por o papa estar numa condição física má que isso lhe retira condições. Seria se existissem sinais graves de senilidade. Mas outros há que admiram a não renuncia do papa, vendo nele a imagem de Cristo, que não desiste face ao sofrimento. Mas não é liderança espiritual que se procura num papa. Quem ocupou o cargo nunca a deu, por isso também ninguém a procura verdadeiramente.