quarta-feira, abril 26, 2006

O novo homem chegou

À entrada de uma determinada auto-estrada, observei um indivíduo na viatura em frente abrir o vidro e deitar um monte de castas de laranja para a via rápida. O “javardolas” não aparentava ser um grunho típico, tinha mulher e filho com ele. Indignado com isto, acelerei, coloquei-me ao lado dele, apitei e sigui em frente. Contudo, quase imediatamente apercebi-me da inconsequência do meu acto, que ao invés de ser visto como um protesto, foi quase certamente sentido como uma provocação de alguém que embirrou contra um inocente que não fez nada de mal.

Este e outro tipo de actos que cada vez mais frequentes são a prova de algo que ando a supor: já não existe espécie humana, que se dividiu em duas para sempre. De um lado temos o Homem Antigo (HA) e agora surge o Novo Homem (NH). Há quem possa argumentar que sempre existiram imbecis deste género e, por isso, não há necessidade de postular o NH. Discordo, o tipo de pessoa em causa tem características únicas que o separam totalmente HA. Antigamente, entre pessoas de diversas condições existiram sempre elos de ligação. Parte dos costumes, dos valores e da linguagem eram partilhados quase universalmente. O que o NH veio trazer são novos valores, costumes e uma linguagem totalmente nova. Mas apesar de tanta novidade, o olhar desatento pode não descortinar qualquer diferença.

O NH baseia toda a sua actuação na satisfação dos desejos imediatos, desejos esses que se encadeiam sem qualquer coerência e sem ponderar nas consequências envolvidas. A novidade está no contexto actual potenciar esta actuação a um nível sem precedentes. Tendo como base a satisfação imediata dos desejos, tudo o resto lhe fica submetido. Os valores são dinâmicos e aqueles que convierem no momento. O NH não tem a noção do que significam os seus valores, sabe apenas que é algo a que pode recorrer quando mostrar indignação ou procurar desculpar-se de algo. Quase em simultâneo o NH pode defender acções baseadas em valores contraditórios. Entrar em contradição é para o NH apenas uma questão de estilo, perfeitamente secundária. Se alguém insistir na importância de não entrar em contradição, o NH considera isso arrogante ou perda de tempo.

A linguagem do NH apela ao estilo minimalista e é sobretudo transmitida por via oral. As nuances do estilo gutural do NH são impossíveis de ser apreendidas por escrito. O discurso do NH tem toda a sua essência concentrada na articulação e na dinâmica dos sons. As palavras utilizadas são apenas um acessório para a vocalização, podendo ser substituídas por quaisquer outras. O NH fala alto e mesmo quando está em estado amistoso tem constantes impulsos para afirmar a sua pujança. Quando faz pausas no discurso, longe disso significar reflexão, o NH apenas sinaliza uma ameaça. Em 5 minutos, o NH pode mudar inúmeras vezes o tom da “conversa”, sempre imprevisível e sem qualquer memória do passado.

O que distingue o NH de um imbecil vulgar é que o NH não vê razões para temer seja o que for, além de que o seu comportamento é socialmente encorajado. O NH não teme a lei porque aprendeu que a sua aplicação é rara e mesmo quando acontece é limitada. Por outro lado, o NH fica encorajado pelo tratamento que recebe na escola e pelas leis do trabalho. Na escola, o NH aprendeu que não o precisa de estudar, nem de se comportar bem. Aliás, caso se comporte mal pode ser que o passem de ano apenas para se livrarem dele. Caso isso não resulte, os pais podem sempre recorrer a ameaças contra os professores. No caso do emprego, o NH não necessita de esforçar-se minimamente. Mesmo que alguém se atreva a despedi-lo, o tribunal de trabalho apressa-se a ordenar que restituam a situação anterior.

Os especialistas afirmam que, em teoria, é possível as duas espécies, HA e NH acasalarem entre si mas provavelmente o ser resultante será estéril.