terça-feira, abril 18, 2006

O rapto da inocência (II)

À saída do cinema, não estou muito longe da porta da casa de banho para deficientes. A minha atenção é chamada por sons no seu interior, que se desvendam ser de uma mulher em cadeira de rodas a tentar sair. O primeiro impulso foi ajudar, abrindo a porta. Mas não o fiz, porque pensei que seria um acto paternalista, que daria a mensagem que um deficiente não consegue fazer nada por si só. Observei o acto discretamente, tentando nem dar um ar de quem não via o que estava a acontecer nem que estava a ver cada pormenor como se fosse um acidente de auto-estrada. A mulher debatia-se com a porta e a saída estava um pouco demorada, o que me provocou um novo impulso de ir ajudar. Por outro lado, não parecia estar em apuros e os seus gestos enérgicos davam a entender que ela tinha larga experiência em fazer aquilo, talvez até lhe desse algum gozo ou poderia ser um luta pessoal que impediria a interferência de outros. Conseguiu sair mas fiquei na dúvida se a minha inacção física foi o acto certo ou não.

A situação anterior é uma questão de generosidade ou solidariedade? Sem grandes méritos etimológicos arrisco a dizer que a generosidade tem a ver com actos isolados, espontâneos e quase instintivos. A cena da casa de banho (quem só começou a ler aqui, por favor, veja o enquadramento) será, assim, uma questão sobre generosidade. Já a solidariedade tem a ver com actos pensados, que podem ter a ver com um abdicar de algo em favor de outra pessoa sem ter qualquer recompensa que não seja a do próprio acto de dar. Além disso, uma pessoa não se pode considerar solidária apenas devido a um acto solidário. Terá de ter uma atitude constante e coerente ao longo do tempo. Atitude essa que deve excluir a vontade de obter méritos terrenos ou divinos, uma vez que a pessoa realmente solidária se esquece de si no acto de dar.

Penso que, em geral, ainda se pode dizer que os portugueses são generosos. Nem sempre as situações são fáceis de avaliar, como a descrita acima. Mas os portugueses ainda mantêm alguma disponibilidade para ajudar o próximo, mantém instintos generosos, para ser pouco exacto. Mas em termos de solidariedade deixamos muito a desejar. São atitudes aparentemente contraditórias que necessitam de ser explicadas. Ser solidário neste país causa bastante desconfiança. Há alguma desconfiança em recorrer a intermediários para ser solidário, o que se percebe. Mas há motivações mais profundas para a reduzida solidariedade lusa, que não são óbvias.

A verdade é que os portugueses já são solidários à força, via contribuições forçadas para a Segurança Social e impostos. Estas contribuições levam, por si só a um apertar de cinto que reduz a margem monetária para contribuições solidárias. Mas nem tudo é explicado apenas pelo dinheiro, porque a solidariedade não necessita obrigatoriamente de dinheiro envolvido. Há um efeito mais subtil no envolvimento do Estado, que se diz solidário constantemente (se realmente o fosse não o precisava de apregoar a toda a hora). Quando o Estado chama a si grande parte das funções sociais está a roubar a iniciativa à sociedade civil. Não é um efeito óbvio nem sequer atingido em poucos anos. Mas décadas de paternalismo social por parte do Estado foram criando a ideia de que cabe ao Estado colmatar toda e qualquer carência social, por mais ínfima que seja. Pior que isso, este paternalismo estimula o aparecimento e manutenção destas carências.

Não nos iludamos com aqueles que defendem encarniçadamente o Estado social. A demagogia fácil de argumentar que sem este modelo social os pobrezinhos vão morrer todos à fome e de doença, escondem as verdadeiras motivações, que a meu ver são de dois tipos. Uma das motivações é a manutenção de privilégios para muitos que nada têm de necessitados. Estes até sabem que muito poucos defendem a total exclusão do Estado em relação às funções sociais. Contudo, sabem que há formas mais eficazes e justas de o fazer que eliminariam muitos privilégios.

Outra motivação é ideológica, que acha que tudo o que é privado é repugnante e advoga um controlo estatal de quase tudo, uma vez que o seu ideal é a sociedade totalitária. Para estes, a manutenção de um Estado social é uma forma eficaz de quebrar as dinâmicas privadas. De pouco lhes interessa que o seu modelo seja insustentável e que, na prática, nada tenha de solidário.

Incrivelmente, a sociedade acredita piamente nesta solidariedade estatal. Uma das razões tem a ver com uma promessa de segurança em toda e qualquer situação. Quanto mais não seja, acalma o sentido de auto-preservação. Mas um povo tão desconfiado como o nosso não coloca nada disto em questão? A resposta está na propaganda ideológica, que entorpeceu os espíritos. Há décadas que algumas almas mais lúcidas e corajosas vêm alertando para a insustentabilidade do modelo presente. Como recompensa tem recebido insultos e desprezo. Acontece um ministro vir alertar para a eminente falência da segurança social para todos começarem a fazer figuras de baratas tontas, como se não tivessem sido avisados antes. Só quando as pessoas voltarem a assumir algumas responsabilidades a palavra solidariedade voltará a ter significado. Por enquanto é arma de arremesso.