sábado, setembro 30, 2006

O Polícia Matraquilho


Há dias em que temos de acreditar no sobrenatural, acreditar que há algo que o destino nos colocou pela frente e não iremos conseguir evitar, porque há uma qualquer conjugação invulgar nos astros ou porque o Criador concedeu velar por nós durante algumas horas. Esse dia ocorreu para mim na última quinta-feira, 28 de Setembro de 2006. O início da manhã foi auspicioso com duas circunstâncias que passariam despercebidas ao olhar destreinado. Em duas portagens seguidas disse “Boa tarde” e não “Bom dia” como seria correcto. Ora se cometo erros elementares como este com frequência, é raríssimo eles aparecerem duas vezes consecutivas e isso deixou-me logo em alerta para algo de anormal que se pudesse estar a passar.

Por volta do meio-dia vejo algo fora dos parâmetros normais, um indivíduo deslocando-se num veículo peculiar, que nem consigo descrever bem, tem uma base de cerca de 50cmX50cm e duas rodas paralelas. Já tinha visto algo assim na TV, mas ao vivo o meu cérebro apenas conseguia conceber, de início, que só alguém portador de deficiência poderia utilizar semelhante coisa. Mas não, era um sujeito com todo o ar de se manter em forma com idas frequentes ao ginásio, pelo que a deficiência, a existir, não seria física. Isto pode ser tudo preconceito meu por nunca ter visto uma coisa daquelas ao vivo e daqui a uns tempos podem-se banalizar e ninguém ligar. Mas porque razão teria de ser precisamente neste dia que tal coisa me tinha aparecido pela frente?

Já dentro desse centro comercial a minha capacidade de espanto foi colocada novamente à prova. Um estrangeiro, com aquele ar maltrapilho que os estrangeiros da Europa do norte que vêm a Portugal ostentam, estava a engraxar as sandálias. Sandálias!? Poderão dizer que muita gente faz o mesmo mas nunca tinha visto tal coisa. Um pouco mais tarde num cruzamento com semáforo, avisto algo ainda mais um vulgar. Pouco depois de abrir o semáforo, um sujeito que ia no lugar do “pendura” sai do carro em andamento, que fazia a curva no meio do cruzamento. Começavam a ser demasiadas ocorrências estranhas para um só dia, mas ainda estavam longe do seu fim. Neste relato não irei descrever todas as ocorrências do género, porque algumas deram-se no desempenho das minhas funções assalariadas e por razões de ética profissional terão de ficar reservadas. Mas a título indicativo, também aqui tiveram lugar 2 ou 3 eventos bastante invulgares, para não dizer inéditos.

A certeza de que aquele dia não era como os demais veio no final da tarde. Perto do Príncipe Real deparei com algo que imaginava extinto há muito, algo que há mais de 10 anos não via, algo cuja falta aprendi a sentir e a aceitar, nada mais nada menos que um polícia sinaleiro. Não um polícia “regular” chamado para resolver qualquer problema de tráfego pontual, com um ar de enfado, mas um autêntico polícia sinaleiro, luva branca, chapéu a condizer, coreografia milimétrica, era um autêntico ritual urbano com um poder mesmerizante. Depois disso, “algo” me disse que até ao final desse dia algo ainda mais extraordinário haveria de ocorrer à minha frente. A confiança era tal que nem me dei ao trabalho de procurar, haveria de vir ter comigo.

Tinha uma saída em grupo para fotografar a bienal “Luzboa”. Rapidamente esqueci-me das ocorrências invulgares desse dia, absorvido no convívio e no acto fotográfico. As horas passaram até que a meio do percurso fomos abordados por uma senhora de meia-idade. Perguntou se éramos da televisão. Tripés e máquinas fotográficas não são apanágio da televisão mas os meios são familiares. Dissemos-lhe que não mas não pareceu ficar muito convencida e repete a questão. Mais que duvidar parecia ansiar por sermos mesmo da TV. Tinha um aspecto normal, um discurso escorreito e polido.

Ao negarmos novamente pertencer ao meio audiovisual das massas alienadas, questiona de forma mais abrupta: «Então são do governo!?» Aliás, nem parecia bem uma pergunta mas um princípio de acusação. Se depois disto os meus companheiros acharam melhor afastarem-se, o meu ímpeto foi de interagir. Disse-lhe que não podia ser do governo porque era meio anarquista. «Anarquistas são os do governo», replicou e no enfiamento disse-lhe: «Sim, mas eles são anarquistas porque são incompetentes, eu sou por convicção.» Na verdade, não estávamos a trocar ideias mas a executar uma rotina codificada que dava acesso a um universo alternativo. Percebi que tinha a “cereja em cima do bolo” diante de mim. Os parágrafos seguintes pretendem transmitir um pouco do discurso da senhora, sabendo de antemão que é impossível dar um vislumbre correcto do mesmo nem da sua intensidade dramática. Para melhor absorver as suas palavras adoptei a postura do monge em meditação, que apenas contempla a sua própria postura e respiração. Muito, mas muito por alto, aquilo que ouvi foi algo assim…

«Sabe, as pessoas do governo são uns criminosos, temos de os parar, são uns assassinos terroristas. Têm quatro máquinas trituradoras. Uma está na Rua da Prata, outra na Praça do Comércio, outra no Campo Grande e ainda uma, se não estou em erro, na Praça de Londres. São trituradoras de pessoas, arrancam os membros, os órgãos internos, desfazem tudo em pedacinhos. A polícia também está metida nisto, há um que controla tudo a mando do governo, é o Polícia Matraquilho. E isto é tudo verdade, foi um jornalista que me contou. Temos que denunciar estes assassinos do governo. Eles vão buscar as pessoas a casa à noite para depois as matarem. Nos últimos tempos têm também arrancado os cérebros. Uma noite destas soube que tinham sido atiradas quatro mil pessoas ao rio, eu até duvidei. O 112 nestas coisas ainda tem colaborado, telefonei para lá e disseram que era verdade e iam enviar imediatamente equipas de socorro do INEM para o local, ainda conseguiram salvar muitas pessoas. Mas ainda há pouco tempo tive informações seguras que não havia apenas quatro máquinas trituradoras de pessoas, mas mil. Dizem que o Polícia Matraquilho é canibal, mas não pense que é o único, há muitos como ele. Estão todos metidos nisto, o governo, os padres, o Carmona Rodrigues. O tribunal de Haia já julgou o Cavaco Silva, o Mário Soares, o Jorge Sampaio, o Sócrates e esses assim e deu indicação para serem enviados para as câmaras de gás.»

Teria ficado horas a ouvi-la, mas o resto do grupo esperava de forma impaciente por mim. «Deixe-me só contar mais isto», continuou agarrando-me no braço. «As irmãs do Cavaco Silva também são outras que… E o Cavaco Silva não é presidente coisa nenhuma. Ele não tem qualquer legitimidade porque sabe-se que milhares de boletins foram roubados que eram votos para a outra senhora. E sabe o que é que eles estão a pensar fazer? Querem atirar cobras para o meio da rua, imagine. Estão todos malucos, meu Deus. Vocês unam-se para denunciar isto, temos de parar este governo assassino e terrorista!»