terça-feira, julho 17, 2007

Civilização e religião (12)

OS VALORES OCIDENTAIS REVELADOS PELA ESCOLÁSTICA (1)

Michael Novak, no seu artigo “The Judeo-Christian Foundation of Human Dignity, Personal Liberty, and the Concept of the Person”, defende que os valores pessoa, consciência, verdade, liberdade e dignidade, tais como os conhecemos hoje, derivam do período entre 1100 e 1350 sob influência dos teólogos medievais, o mais famosos dos quais São Tomás de Aquino. Apesar de serem conceitos já utilizadas em eras pré-cristãs, a acepção que hoje lhes damos e levamos à prática foi-nos revelada por estes escolásticos.

Para os antigos gregos a dignidade não se aplicava a todos os homens. Platão e Aristóteles acreditavam mesmo que apenas alguns indivíduos tinham uma natureza que os devia afastar da escravidão e, por isso, merecedora de dignidade. A formulação moderna, que conhecemos por Kant, de que nenhum homem deve ser visto como um meio para algo mas como um fim em si mesmo, mais não é que uma repetição dos preceitos bíblicos, primeiro delineados pelo judaísmo e finalmente consolidados no cristianismo através da formulação de que todos somos filhos de Deus. A concepção da universalidade da dignidade humana é um produto acabado do cristianismo, que os tempos anticlericais hodiernos fazem por esquecer as origens, atribuindo a paternidade com frequência e de forma errada ao Iluminismo.

Para judeus e cristãos a liberdade é uma dádiva de Deus. Contudo, no século XIII, aquilo a que se podia chamar de mundo académico, em especial o sedeado na universidade de Paris, tinha uma visão diferente sobre esta questão. Predominavam as interpretações de Aristóteles mediadas por filósofos árabes como Avicena e Averróis. Para estes, o entendimento nunca ocorria verdadeiramente no ser humano mas era-lhe fornecido por Deus, o que parecia justificar os eventos onde somos surpreendidos pelas nossas próprias cogitações. Tomás de Aquino percebeu que esta concepção colocava a liberdade em risco. Munido de novas traduções em latim dos originais gregos, bateu-se durante 15 anos contra a corrente dominante “averroista”, confirmando-o como o primeiro e mais decisivo obreiro da causa da liberdade no ocidente.

Para os filósofos cristãos, a questão da liberdade vai ligar-se à da verdade. Para perceber isto é preciso ter a noção de que a filosofia cristã coloca a liberdade interior acima e previamente às liberdades política e económica. Os actos de conhecer, julgar e opinar, como actos interiores que são, devem ser acompanhados de uma postura responsável sob pena de trair a confiança que Deus depositou em nós quando nos deu a liberdade de os possuirmos. Essa responsabilidade prende-se com a necessária fundamentação da argumentação e um compromisso de apego incondicional à verdade. Quem assim actua coloca-se sob o julgamento da própria realidade, efectivado pelo escrutínio da comunidade composta por aqueles que possuem o mesmo espírito de procura da verdade.

Aquino identificava dois actos de liberdade que era sempre possível levar à consciência, mesmo nas condições mais adversas: a liberdade de especificação e a liberdade de exercício. A especificação prende-se apenas com a focagem numa determinada parte da realidade enquanto o exercício trata-se do julgamento quando existem evidências suficientes para o veredicto, sem decisões preconcebidas mas também sem fugir a ess responsabilidade. A passagem da liberdade interior para aquela que se imprimiu nos sistemas políticos modernos e nas instituições culturais não pode ser feita no imediato, sendo necessárias muitas gerações. A tentativa de mudar bruscamente, através da fé inabalável na razão, conduziu às piores catástrofes da história da humanidade, ocorridas no século XX. Trata-se do conceito fatal, descrito por Hayek, que parte da falácia de que a razão é a fonte de tudo quando na realidade a razão acaba por ser também uma consequência do processo evolucionário.