terça-feira, dezembro 23, 2003

O Natal


Nesta quadra festiva há duas reacções predominantes. Uma delas é a versão beata da coisa, que prega ser esta uma época em que os homens se unem e as diferenças se esbatem, dos votos de paz no mundo e extermínio da pobreza, do reconciliar espiritual, do exacerbar dos valores da família e da solidariedade. Outra é a versão crítica, que fala do consumismo desenfreado, da deturpação do objectivo central no Natal, da hipocrisia de apenas se falar de certas coisas nesta altura, etc. No entanto, pelo que me é dado a entender, as duas versões terão sempre coexistir, já que a primeira leva à segunda.

Existem muitas razões para ainda comemorarmos o nascimento de Cristo 2000 anos após sucedido, mais coisa menos coisa. Um dos pontos centrais da paixão de Cristo (é curioso ver que em alguns locais se fala de Cristo e de Jesus como figuras distintas…), é o seu sacrifício para expiar os pecados da humanidade. Esta bonita ideia ficou extremamente marcada na vida ocidental. A partir daqui, o mundo cristão passou a ver a salvação apenas como sendo possível através de algo exterior. Passou também a dar valor ao heroísmo, em que nos sacrificamos pelos outros. O resultado é que as pessoas deixaram de ter como opção moralmente viável fazerem algo por si próprias, já que isso é considerado incorrecto.

Não há dúvida que são belas ideias, mas conduziram-nos a um destino exactamente oposto do que era almejado. O homem que trabalha e vive apenas para o exterior, desprezando a vida interior, nunca chega a se conhecer a si mesmo. É ensinado a desprezar as suas necessidades, ou então a procurar a sua satisfação a partir de algo exterior – em Deus, na pessoa amada, nos amigos, nos bens materiais. Na realidade, nada exterior à pessoa pode resolver as suas necessidades mais essenciais, porque só o próprio indivíduo pode resolver o dilema essencial da sua vida, que é diferente de pessoa para pessoa.

O consumidor desenfreado, que este ano terá de ser um pouco mais comedido, talvez não cumpra aquilo que o Natal pretendia. No entanto, foi a ideia central do Natal que o levou a ser o que ele é. Cristo devia odiar o Natal…