segunda-feira, janeiro 26, 2004

A morte não foi em directo


Ontem à noite tinha pensado colocar aqui um post sobre um assunto “sério”. Mas, estando a ver o jogo V. Guimarães – Benfica em directo pela Sport TV, passou-me a vontade. A dado momento tive o ímpeto de escrever sobre os acontecimentos trágicos e a performance da comunicação social. Mas achei que não era de bom tom escrever um post a quente sobre assunto tão delicado.

Para os poucos que não sabem do que falo, vou resumir os acontecimentos, do meu ponto de vista. O jogo em Guimarães, como espectáculo, foi fraco. Choveu bastante e a cada minuto que passava a relva ia dando lugar à lama. Os jogadores esforçavam-se, mas era complicado fazer uma jogada completa. Como adepto benfiquista (e sócio há algumas semanas) via o jogo chegar ao fim, num empate que poria o clube fora da disputa de qualquer lugar relevante no campeonato. Foram efectuadas várias substituições, entre as quais a entrada de Feher a meio da segunda parte ou talvez ainda antes.

O Benfica acabou por marcar perto do final, quando a esperança era pouca. A alegria foi grande mas apenas alguns minutos depois tudo se desvaneceu face a algo muito mais importante. Mesmo perto do fim, já nos minutos de desconto, Feher, jogador do Benfica, tenta ganhar algum tempo atrapalhando um arremesso de campo do Vitória de Guimarães. Leva um cartão amarelo por isso, mas o seu sorriso para o árbitro mostra que tal não tinha importância até seria de esperar, coisas do futebol. Logo de seguida inclina-se para a frente e cai inanimado no chão. A gravidade da situação foi de imediato reconhecida por todos. O que poucos parecem ter percebido é que, a partir daquele momento, a situação já não era do domínio público mas do domínio privado.

Quem parece ter percebido isso foi o realizador da Sport TV. A emissão não podia terminar, nenhum espectador iria entender, além de que o jogo ainda não tinha sido dado como terminado. O realizador não quis mostrar a morte em directo. Habilmente mostrou várias imagens do público, de jogadores, mas evitou mostrar imagens com zooms apertados, que incidissem nas manobras de reanimação. Isto foi um grande exemplo do “mundo do futebol”, que certamente não seria seguido por estações como a TVI.

Mas este momento de respeito pela dignidade do jogador passou despercebido, em relação ao que depois aconteceu. Ainda o jogador estava no campo nas manobras iniciais de reanimação, já estava um jornalista da RTP em directo a desvalorizar o assunto e a perguntar a um adepto do V. Guimarães que saía, como ia ser agora depois de mais uma derrota. Os mais diversos canais começaram a passar as mesmas imagens do jogador a cair inanimado vezes sem conta. Depois vieram as entrevistas a algumas sumidades, que mostraram a sua sabedoria face aos mortais. Alguns vieram com termos ultracomplicados sobre doenças do coração, como se alguém fosse entender o que diziam. Outros vieram levantar a questão assaz pertinente dos estádios do Euro 2004, devido ao atraso da ambulância em entrar no estádio e das dificuldades na manobra.

Fico sempre estupefacto com a clarividência destes visionários, que só têm certezas, que não colocam um “se” ou um “talvez” em nada, que nos momentos difíceis têm a coragem de por o dedo na ferida... Porque eles têm a certeza que uma ambulância demorou 15 minutos a entrar no estádio porque não foi possível ser antes. Não se questionaram se a ambulância não chegou antes porque não era ainda necessária, havendo coisas mais urgentes a tratar. E esquecem-se que a ambulância chegou e ainda esteve alguns minutos à espera até ser possível transportar o jogador. Mais ridículo ainda é a ênfase que se deu a ter que se retirar uma bandeira de canto para a ambulância entrar, como se tal acção fosse tão complicada como retirar uma baliza ou derrubar uma bancada. A bandeira de campo levou 5 segundos a retirar, não perceberam isso?

Talvez este seja um bom exemplo de que há coisas que não se podem evitar. Feher morreu e não havia nada que o pudesse evitar. É quase impossível conceber uma situação de paragem cardíaca que possa ser socorrida de forma mais rápida. É claro que situações destas têm de ser previstas e seria escandaloso o jogador ter morrido por falta de assistência, ou por não ter chegado ao hospital a tempo. Mas não foi isso que aconteceu. Mesmo assim há pessoas que não resistem à oportunidade de brilharem um pouco. É um pouco sintoma da falta de respeito pela vida e pela morte – que no entanto veio de pessoas fora do futebol, assinale-se.

Hoje de manhã andava a pé e uma ambulância ia com urgência em direcção ao hospital Curry e Cabral. Talvez alguém em perigo de vida, mas somos insensíveis a isso, com esquemas mentais há muito consolidados que evitam enfrentar o assunto. Quando um jogador de futebol quase morre em directo, tentamos desviar o assunto, ou tornando-o demasiado técnico ou encetando reflexões estéreis. A morte ainda assusta muita gente, que têm dificuldade em a enfrentar. Mas negar a morte é negar a vida.