segunda-feira, novembro 27, 2006

A traição do Gato Fedorento


Tive a sorte de ver estes rapazes na Sic Radical, por mero acaso, quando apareceram pela primeira vez há uns anos atrás. Com a proliferação de candidatos a engraçadinhos (e todos os homens face a uma mulher bela o tentam ser) que há na TV, ao fim de alguns segundos percebi que estava a assistir a algo diferente. A questão não era terem ou não graça, estes jovens tinham essência, o que é diferente. Ao contrário do que previa, foram tendo um sucesso crescente até serem os ícones do actual humor em Portugal.

O trabalho tem, no mínimo, três etapas, que quase se confundem na prática. Primeiro a análise onde se decompõe o carácter ao ínfimo pormenor, seguindo-se a síntese que escolhe meia dúzia de traços que permitem identificar num instante a personagem em causa e finalmente, o acto criativo propriamente dito que tenta sempre manter a surpresa até ao último momento.

O actual programa do Gato Fedorento é, ao meu ver, uma traição às suas origens. A maior falha foi a quebra do carácter intemporal dos formatos anteriores. Desconheço as razões disso ter acontecido, apesar de imaginar que a ida para a RTP possa ter algo a ver com isso. O magazine, como é mais ou menos apelidado, não só fica dependente dos acontecimentos recentes mas também das figuras públicas que estiveram em destaque. O risco é triplo. O humor fica com um prazo de validade muito reduzido, mas fica também mais previsível e, talvez mais importante, o próprio sentido crítico fica em causa.

A redução do prazo de validade é uma evidência e pode-se assumir que seja compensado por uma maior eficácia momentânea. Acontece que essa eficácia revela também amiúde uma das principais características nacionais, a cobardia. Alguém se lembra das piadas do Bolo-rei de Cavaco Silva? O acontecimento original já tem mais de 10 anos e foi agora reanimado na campanha para as presidenciais. Mas bastou o homem ter ganho as eleições e parece que já temos uma nova pessoa sobre a qual não temos piadas a dizer.

A previsibilidade do novo formato tem ainda algo a ver com o ponto anterior, mas acrescenta-lhe algo mais. O programa em que Santana Lopes esteve em destaque foi um bom exemplo. Logo no início, quando começaram a falar que a semana tinha sido desinteressante imaginei logo boa parte do que se iria seguir. O próprio formato obriga que naquela semana Santana Lopes fosse massacrado. O ponto que me parece mais pernicioso é esta previsibilidade agradar a tantas pessoas. O humor deixa de ser aquela provocação que nos abala as convicções e passa a ser um acto de auto-satisfação, ou seja, perde a essência.

Finalmente, até que ponto um programa marcado pela “espuma dos dias” não vai ficar influenciado em demasia pelas convicções pessoais dos humoristas e pelas pressões que estes sofrem de várias formas? O próprio genérico afirma que Gil Vicente é uma inspiração, contudo Gil Vicente caracterizava-se por criticar figuras genéricas e não indivíduos particulares, por isso ainda é lido. Quando se faz um sketch com um político genérico, um Lopes da Silva ou um Meireles, são todos os políticos com aqueles “tiques” que são criticados, não só os de agora mas também os de passado e os que ainda virão. Mas quando está em causa uma figura específica, a função crítica é quase abafada e submergida pelo extermínio suave do carácter do visado. É fácil ceder à tentação de escolher sempre os que está na mó de baixo. Ora, isto é do mais politicamente correcto que há, exactamente o contrário do verdadeiro humor que deve ter a coragem de quebrar a modorra do charco e não justificá-la com umas graçolas.

É bem sabido que, exceptuando o Zé Diogo Quintela, os outros membros do Gato Fedorento estão bem à esquerda. Este desequilíbrio foi bem elidido com os formatos anteriores, mas agora já mostra as suas consequências. As figuras a criticar vão sair fundamentalmente da chamada direita. As críticas ao governo são mínimas, quase que se pode dizer que têm o efeito de reforço da imagem deste, fazendo lembrar as críticas e caricaturas que se faziam a Mário Soares quando este era Presidente da República, que de eram tão “cáusticas” que este as adorava coleccionar. É preciso não esquecer que o programa feito na RTP que é tutelada pelo governo, e tendo em conta que Sócrates tem uma apetência para dominar os media duma forma exemplar, é difícil de imaginar que não existam pelo menos alguns constrangimentos inconscientes.

O actual formato é mais indicado aos aperitivos dos talk shows. Contudo, nem tudo é negativo. Começa logo por me parecer que existe alguma disponibilidade dos próprios humoristas em alterar o formato. O último programa, indo buscar como pretexto factos ocorridos na semana, praticamente só exibiu sketchs mais intemporais e impessoais. E apesar de tudo, não existe ninguém melhores que eles no ramo. Resta saber se continuarão a ser os maiores críticos deles mesmos e se saberão resistir aos cantos da sereia. Deverão perceber que aqueles que não gostarem de ser por eles visados irão esconder a sua ira e optar por uma estratégia de “junta-te a eles”. Foi desta forma que Herman José se suicidou artisticamente ao se embriagar com o seu sucesso junto aos poderosos, apercebendo-se muito tarde que já não os podia criticar.

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quarta-feira, novembro 22, 2006

Simplificando

Ouvia alguém falar sobre um documentário em que se analisavam as causas do desastre com o Concorde. A certa altura determinado evento podia ter 17 explicações alternativas. Dezassete? Ora a vida é muito mais simples para quem acredita em teorias da conspiração. Há dois tipos de vantagens. Por um lado não existem escolhas alternativas, existe uma simplificação radical, qualquer que seja o assunto e a sua complexidade existe apenas uma única teoria que tudo explica. Claro que poderão existir algumas pontas soltas aqui e acolá, mas nada que faça vacilar o tronco principal. Aliás, estas dúvidas pendentes invariavelmente funcionam como reforço da teoria da conspiração, como se esta ainda pecasse por defeito.

Mas há uma segunda vantagem nas teorias da conspiração. Não têm impasses, nunca ficam bloqueadas e nada de essencial fica por explicar. As explicações científicas sobre assuntos complexos quase sempre traçam vários cenários possíveis. As dificuldades são várias, incertezas nas medições, modelos que não representam a realidade de forma conveniente e por vezes mesmo dificuldades teóricas nos mecanismos de base. As teorias da conspiração assumem que tudo isto é irrelevante porque não falam de fenómenos aleatórios mas de circunstâncias em que existe um culpado. Por isso aparecem em domínios onde vários poderes se movimentam.

Mas há também teorias da conspiração encobertas. Podemos incluir quase tudo o que meta o aquecimento global. Aqui o culpado é o dióxido de carbono e ele tudo explica, o suposto aquecimento global, os furacões, até um possível arrefecimento global. Já merece o epíteto de teoria da conspiração porque não é mais uma explicação mas sim a explicação. Aliás, para os seus proponentes e para a generalidade dos militantes da religião ecológica já nem lhes basta que seja a teoria mais provável. Para eles é a única admissível e quem mostra uma postura céptica só ser estúpido ou estar a soldo dos grandes interesses. E aqui voltamos a encontrar novos sintomas de estarmos em presença de teorias da conspiração, a fixação pelos poderosos, o governo americano, as grandes empresas, e mais geralmente o capitalismo. Acaba por ser caricato que apenas esse mesmo detestado capitalismo acaba por criar condições de liberdade e ociosidade que permitem o fetiche das teorias da conspiração.


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