terça-feira, julho 31, 2007

Civilização e religião (14)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (1)

Em 17 de Outubro de 2001, Robert Royal apresentou na Universidade de Delaware uma palestra intitulada “The Importance of Religion to the Development of the West”. Na altura os acontecimentos fatídicos do 11 de Setembro estavam bem vivos na memória dos americanos, mas o autor manteve-se fiel ao tema que já tinha há muito acordado. Numa altura em que a religião islâmica era um assunto em voga, por razões óbvias, tornava-se também importante olhar para a religião no ocidente.

Royal chama a atenção para um pormenor curioso. A imagem que existe no estrangeiro sobre os americanos é aquela transmitida essencialmente pela sua cultura popular, sem dúvida a que mais sucesso faz a nível mundial. A partir dessa imagem poucas são as pessoas que diriam que os americanos são um dos povos mais religiosos do mundo. Os próprios intelectuais e políticos americanos desvalorizam isto, bem como quase tudo o que envolva a fé. Por esta razão existe uma imensa lacuna nos meios académicos sobre o estudo do poder das ideias religiosas no desenvolvimento das sociedades, sendo tudo agora pensado em termos económicos, políticos e tecnológicos.

Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o império já estava largamente cristianizado, apesar da perseguição que sofriam os cristãos. O historiador Tácito dizia que o cristianismo não passava de uma superstição depravada com o objectivo de espalhar o ódio entre a raça humana. Mas se tivesse sido assim, como teria sido possível terem ganho o apoio das pessoas comuns e, mais tarde, terem convertido os pagãos só pela palavra? Pensemos na ideia bíblica do amor ao próximo. A sua simplicidade adapta-se a diversos meios culturais. Mas só aparentemente é uma ideia óbvia e que surgirá de forma espontânea. À medida que as sociedades crescem e vão precisando de mais recursos, a solução que se apresenta mais óbvia é o confronto e não a comunhão. E em redor do planeta várias crenças foram neste sentido.

Uma das afrontas que os cristãos fizeram ao império foi prestar cuidados aos desfavorecidos, às viúvas, aos órfãos, aos doentes e aos moribundos, enterrando não só os seus mortos mas também os que não professavam da mesma fé. O imperador Juliano, apóstata, via aqui motivações cínicas. Pensou que podia restabelecer o velho panteão pedindo aos seus que colocassem em prática uma benevolência semelhante à dos cristãos. Descobriu que não era nada fácil instigar a caridade com base em propósitos abstractos. Esta compaixão só era possível porque existia uma crença prévia que Deus e os santos tinham pedido aos fieis para agir assim. Talvez isto ajude a explicar a razão de alguns voluntários ateus e agnósticos, na actualidade, preferirem juntar-se a grupos religiosos em acções de caridade por os considerarem mais sérios.


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terça-feira, julho 24, 2007

Civilização e religião (13)

OS VALORES OCIDENTAIS REVELADOS PELA ESCOLÁSTICA (2)

Outro conceito que foi desenvolvido por Aquino, segundo Michael Novak, foi o de consciência, neste contexto subentendido como consciência moral. O conceito não remonta aos antigos gregos ou romanos e apenas está implícito na Bíblia quando surgem conflitos interiores. Nos tempos modernos a vida moral é entendida, segundo a formulação de Kant, como o cumprir de uma série de deveres. Mas para o cristianismo antigo a vida moral era um caminho a percorrer, antes delineado por santos e homens notáveis, sendo o arquétipo de modelo de vida o próprio Cristo. Aquino preocupou-se em saber como se devia cumprir esta vida moral em termos práticos, tendo em conta que cada pessoa vive circunstâncias únicas e irrepetíveis. É neste ponto que o conceito de consciência se torna útil, definindo-se um conhecimento prático, a impor pela força do hábito, que conduz ao discernimento da atitude correcta a tomar em cada momento e quando existe afastamento desse discernir aparece o remorso. A consciência extinguir-se-á devido a falhas frequentes ou ao deliberado afastamento.

O conceito de pessoa foi-se tornando necessário à medida que a reflexão sustentada da Bíblia avançava. Havia que encontrar um conceito que unisse a natureza dual de Jesus Cristo, humana e divina – daqui ocorreu a génese do conceito de pessoa. A pessoa seria uma substância com capacidade de interiorização e de escolha livre e responsável. Enquanto a noção de indivíduo pode-se aplicar a animais, por pessoa entende-se algo que vai mais além, a quem se pode pedir responsabilidades e reconhecer uma maior dignidade. Com este conceito desenvolvido os missionários tinham argumentos para pedir um tratamento mais humano para povos indígenas no novo mundo e no oriente, ao que os aventureiros europeus não mostraram uma grande abertura. Os autores federalistas americanos perceberam que era necessário interiorizar estes princípios nos hábitos e incorporá-los nas instituições com o sistema de checks and balances.



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terça-feira, julho 17, 2007

Civilização e religião (12)

OS VALORES OCIDENTAIS REVELADOS PELA ESCOLÁSTICA (1)

Michael Novak, no seu artigo “The Judeo-Christian Foundation of Human Dignity, Personal Liberty, and the Concept of the Person”, defende que os valores pessoa, consciência, verdade, liberdade e dignidade, tais como os conhecemos hoje, derivam do período entre 1100 e 1350 sob influência dos teólogos medievais, o mais famosos dos quais São Tomás de Aquino. Apesar de serem conceitos já utilizadas em eras pré-cristãs, a acepção que hoje lhes damos e levamos à prática foi-nos revelada por estes escolásticos.

Para os antigos gregos a dignidade não se aplicava a todos os homens. Platão e Aristóteles acreditavam mesmo que apenas alguns indivíduos tinham uma natureza que os devia afastar da escravidão e, por isso, merecedora de dignidade. A formulação moderna, que conhecemos por Kant, de que nenhum homem deve ser visto como um meio para algo mas como um fim em si mesmo, mais não é que uma repetição dos preceitos bíblicos, primeiro delineados pelo judaísmo e finalmente consolidados no cristianismo através da formulação de que todos somos filhos de Deus. A concepção da universalidade da dignidade humana é um produto acabado do cristianismo, que os tempos anticlericais hodiernos fazem por esquecer as origens, atribuindo a paternidade com frequência e de forma errada ao Iluminismo.

Para judeus e cristãos a liberdade é uma dádiva de Deus. Contudo, no século XIII, aquilo a que se podia chamar de mundo académico, em especial o sedeado na universidade de Paris, tinha uma visão diferente sobre esta questão. Predominavam as interpretações de Aristóteles mediadas por filósofos árabes como Avicena e Averróis. Para estes, o entendimento nunca ocorria verdadeiramente no ser humano mas era-lhe fornecido por Deus, o que parecia justificar os eventos onde somos surpreendidos pelas nossas próprias cogitações. Tomás de Aquino percebeu que esta concepção colocava a liberdade em risco. Munido de novas traduções em latim dos originais gregos, bateu-se durante 15 anos contra a corrente dominante “averroista”, confirmando-o como o primeiro e mais decisivo obreiro da causa da liberdade no ocidente.

Para os filósofos cristãos, a questão da liberdade vai ligar-se à da verdade. Para perceber isto é preciso ter a noção de que a filosofia cristã coloca a liberdade interior acima e previamente às liberdades política e económica. Os actos de conhecer, julgar e opinar, como actos interiores que são, devem ser acompanhados de uma postura responsável sob pena de trair a confiança que Deus depositou em nós quando nos deu a liberdade de os possuirmos. Essa responsabilidade prende-se com a necessária fundamentação da argumentação e um compromisso de apego incondicional à verdade. Quem assim actua coloca-se sob o julgamento da própria realidade, efectivado pelo escrutínio da comunidade composta por aqueles que possuem o mesmo espírito de procura da verdade.

Aquino identificava dois actos de liberdade que era sempre possível levar à consciência, mesmo nas condições mais adversas: a liberdade de especificação e a liberdade de exercício. A especificação prende-se apenas com a focagem numa determinada parte da realidade enquanto o exercício trata-se do julgamento quando existem evidências suficientes para o veredicto, sem decisões preconcebidas mas também sem fugir a ess responsabilidade. A passagem da liberdade interior para aquela que se imprimiu nos sistemas políticos modernos e nas instituições culturais não pode ser feita no imediato, sendo necessárias muitas gerações. A tentativa de mudar bruscamente, através da fé inabalável na razão, conduziu às piores catástrofes da história da humanidade, ocorridas no século XX. Trata-se do conceito fatal, descrito por Hayek, que parte da falácia de que a razão é a fonte de tudo quando na realidade a razão acaba por ser também uma consequência do processo evolucionário.


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terça-feira, julho 10, 2007

Civilização e religião (11)

A FORMAÇÃO DO OCIDENTE (3)

Dawson salientou que não devia ser o plano da Igreja o restabelecer da cristandade, muito menos fazê-lo a partir de um regime teocrático. As relações que importa considerar não são entre religião e Estado mas entre religião e cultura.
O interesse material é tido como a força unificadora da sociedade, enquanto a religião e a espiritualidade são vistas como fontes de divisão e contenda. Por isso a mentalidade dominante diz que urge afastar a religião de tudo o que seja o fulcro do desenvolvimento social e face a isso o Estado passa a ser chamado a intervir em tudo. Dawson acreditava que mais tarde ou mais cedo esta tendência ir-se-ia inverter e o papel fulcral da espiritualidade iria ser reconhecido, não numa mescla que corrompe a religião com a política e a política com a religião, mas da forma que o ocidente conhece, onde o cristianismo conseguiu ser o eixo do progresso transcendendo os aspectos políticos e económicos.

A educação é crucial neste processo. A constante especialização e o utilitarismo seriam as principais causas da desintegração cultural, no ponto de vista de Dawson. A fé que todos os problemas serão resolvidos no futuro por inovações técnicas cria a ideia de que não é necessário assumir responsabilidades no presente. A consequência é a alienação crescente das pessoas em relação à natureza, à sociedade e mesmo em relação a elas mesmas.
Mas como voltar a imprimir uma marca evangelizadora no ensino se Dawson não defendia a utilização dos meios coercivos do Estado para isso? A esperança advinha da contemplação da História. As grandes renovações culturais e mesmo civilizacionais não foram planeadas. Deveram-se a homens religiosos que se preocupavam sobretudo em proteger o seu modo de vida e a sua espiritualidade num contexto decadente. Foram eles que lançaram as fundações através da sua fé e converteram, pelo exemplo, os povos que se tinham paganizado à sua volta.


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terça-feira, julho 03, 2007

Civilização e religião (10)

Antes de prosseguir esta série, que se estenderá pelo menos durante todo o mês de Julho, farei uma consideração acessória. É um exercício curioso tentar explicar a alguém a importância da religião na construção da sociedade. O mais comum é depararmos com uma reacção de espanto e horror. Não é raro mostrarem a sua desilusão por nos termos, supostamente, convertido à religião. O grau máximo de alienação está personificado, nos dias que correm, na religiosidade. É como se o convertido tivesse morrido, já não se pode contar com ele para nada. A religião tornou-se a nova peste, algo tão contagioso que se deve guardar o máximo de distância possível.

Contudo, se tentarmos explicar o âmbito das reflexões sobre religião, que neste caso não é pessoal mas social e cultural, não raro a reacção é de confusão, como se estivéssemos a expor um raciocínio paradoxal. A maior parte das pessoas deixou de conseguir conceber a religião como algo que possa ter um âmbito mais alargado que o pessoal e a comunidade religiosa. Esta “guetização” do religioso estende-se ao passado, como se constatou no preâmbulo da constituição europeia abortada, onde as referências à herança cristã tiveram de ser retiradas em nome do politicamente correcto. Naturalmente sobra ainda espaço para lançar umas farpas pelos pecados da religião, mas é uma avaliação acrítica, meramente achincalhante e que procura por todos os meios afastar-se da objectividade.

Entenda-se que esta proibição do religioso só é válida para o cristianismo e judaísmo. Budistas, hinduístas ou muçulmanos podem discorrer sobre todo o tipo de assuntos que serão bem vindos. Muitos condenaram o posicionamento da Igreja sobre a questão do aborto, mesmo tendo sido um envolvimento minimalista. E veja-se o horror que é recebida cada declaração do Papa que não seja inócua e previsível. Os próprios crentes colaboram nisto ao envergonharem-se de assumir a sua religiosidade. Sendo assim, torna-se imperioso que alguém de fora tome em mãos a tarefa da defesa da Religião.

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