terça-feira, agosto 29, 2006

Paisagem Natural?

Os citadinos amam o campo. Todos adoravam ter um todo-o-terreno para nos fins-de-semana irem em busca de paraísos perdidos e, durante a semana, exibirem a viatura enlameada nas ruas da sua cidade. Alguns até têm a ilusão de que ir para o campo significa o afastamento de tudo o que é humano e estar simplesmente em paz com a natureza. Isto é ilusório porque quase já não existem paisagens que não tenham tido intervenção humana. Além de que os homens sentem-se perdidos numa natureza sem ,quaisquer referências humanas. Experimentem entrar numa mata densa que tenha crescido organicamente e não tenha sido plantada e, por uns momentos saiam dos trilhos. Algumas dezenas de metros à frente aparece uma sensação de pânico, perigo eminente, de nos perdermos e termos um acidente e nunca mais sermos encontrados (o que vai acontecendo) e não conseguirmos voltar para a segurança da civilização. A maior parte das pessoas que se chega perto da natureza, fá-lo devido a motivações acessórias. Ou é para fotografar, ou para se exercitarem, talvez participar numa prova de orientação. Não está aqui implícita uma crítica a estes comportamentos, pelo contrário. Apenas tento me esclarecer.




Mas pensemos o que é a paisagem não urbanizada. O mundo rural está certamente humanizado, as vinhas, os campos de cultivo separados por cercas, sebes ou muros rochosos, os socalcos. As florestas também têm grande intervenção humana, desde a substituição de árvores nativas por outras mais aliciantes, à sua disposição ordenada no terreno, corredores corta-fogo e limpeza de mato. Os rios também são domesticados por barragens, que lhes mudam o curso do leito e acrescentam albufeiras, são cruzados por pontes e até atravessados por túneis, em vários pontos as bermas são ladeadas por betão.



(ver mais)

terça-feira, agosto 22, 2006

Notícias do Gerês


Em missão no Gerês, escrevo este curto post, utilizando os serviços móveis para me ligar ao resto do mundo. Nestes dias a ecologia é quase uma obsessão, políticos, empresas, pessoas comuns gostam de utilizar expressões como “amigo do ambiente”, “biodegradável”, “desenvolvimento sustentável”. Quase que nos faz acreditar que somos um país de amantes da Natureza, que contempla as maravilhas naturais sempre que pode e tudo faz para as conservar. Contudo, se repararmos à nossa volta, o lixo é omnipresente, o meio ambiente é um caixote do lixo onde vão cair todas as nossas desatenções. E os tais amantes da Natureza, sempre tão prontos a mostrarem um ar afectado quando há uma causa mediática, o que fazem eles para tornar este país mais limpo? Também não os vejo por cá a contemplar a Natureza que dizem tanto apreciar. Dirão que não é altura para isso, é tempo para férias, praia, banhos de água e de Sol e não para andar a roçar mato, como eu tenho andado a fazer. Acontece que em outras alturas do ano também são muito poucos os que cruzam algumas das belas paisagens que ainda vamos tendo. Diria que este amor pela Natureza, tão apregoado, anda a ser muito pouco consumado.



Em Pitões das Júnias existe um mosteiro em estado de algum abandono. De difícil acesso, o seu isolamento dá que pensar. Penso também no mosteiro na Arrábida e no convento dos Capuchos e no seu isolamento. Em quase todas as religiões há duas variantes. Há uma visível, que mais que se misturar com a sociedade envolvente, a tenta evangelizar. Épocas há em que esta variante mundana mais não tenta ser que um dos protagonistas no jogo do poder. A essência é guardada pela segunda variante, a que é praticada por poucos em retiros afastados, talvez para não caírem sob alçada da variante mundana. Aconselho uma visita guiada ao convento dos Capuchos em Sintra, onde se fica a saber que, ao invés de serem evangelizadores de pacotilha, aqueles monges tinham regras extremamente severas em relação aos noviços. Para testar a força do seu carácter, aos noviços não era dirigida palavra durante um ano. Estes monges foram também considerados os primeiros ecologistas pela forma harmoniosa como tentavam interagir com a Natureza. Existe ainda uma sala muito curiosa, com uma excelente acústica, onde para não se gerar o caos é preciso falar com um volume apenas no limiar da audibilidade. Este controlo, que é sobretudo mental sobre o fluxo desordenado dos pensamentos, é das coisas mais necessários nos dias que correm. Era uma boa ideia criar mais salas como esta. Não é preciso ser religioso para lá entrar.

(ver mais)

quarta-feira, agosto 16, 2006

Falsas imagens de nós mesmos

Por incrível que pareça, onde o ser humanos mais frequentemente erra é na avaliação de si mesmo. Estando o objecto de análise disponível 24 horas por dia, nem tempo nem disponibilidade faltam para fazer avaliações mais correctas. Pensemos nas avaliações demasiado optimistas. O erro está em nos acharmos lúcidos e que temos o domínio das situações. Ora a sensação de lucidez é um tremendo disparate, porque o aproximar à verdade faz-se no meio da dúvida e sempre com humildade. Quem se acha lúcido apenas goza a excitação de ver os seus dogmas reforçados.

A ilusão do controlo é talvez ainda mais nefasta. O dependente de drogas, o maníaco ao volante, o casal em conflito, o aluno que se deixa atrasar, todos eles sentem que têm um grande domínio da situação. Quanto maior é o risco, a verve que daí advém provoca a ilusão do o controlo ser maior que nunca. Daí ao desespero há uma distância imensurávelmente curta. Com o envelhecer, as pessoas vão aprendendo aos poucos os enganos presentes nestas situações bem catalogadas. Esta aprendizagem, de evitar os erros mais comuns, é chamada de amadurecimento. Mais um erro de avaliação, porque o fundamental não foi abalado e o indivíduo continua a ter a ilusão do controlo, no trabalho, com os filhos, colegas e amigos, onde não se apercebe da deterioração das situações, também ajudado pela hipocrisia reinante que evita confrontos e lhe dá a sensação de que está tudo bem.

Por outro lado, há as avaliações demasiado negativas. As pessoas acreditam pouco no seu potencial. Ou pensam que não nasceram para determinados voos ou então que são demasiado velhos ou ainda que nunca terão as condições necessárias. Então, se as pessoas tivessem todas as mesmas condições e começassem a ser “preparadas” na mesma idade, iriam ser todas geniais? Claramente não, a realidade não se coaduna com as nossas fantasias igualitaristas e pode ser bem cruel. Muitos jovens hoje em dia não percebem isso e querem que alguém lhes reconheça o talento que eles, inegavelmente, não possuem. Mas penso que para a maior parte de nós a ilusão é no sentido contrário. Não, não podemos ser geniais em tudo e talvez nem sequer muito bons em alguma coisa. Ainda assim, a maior parte das pessoas tem o seu potencial subaproveitado.

Outro erro de avaliação diz respeito àquilo que os indivíduos conseguem aguentar. A sensação de não poder mais, de que isso está para além dos “meus” limites, são o pão-nosso de cada dia. Mas que sentido tem falar de limites quando os ultrapassamos já vezes sem conta? O limite não tem a ver com a realidade, é apenas uma noção no momento ditada pelo desejável ou pelo sofrimento. Mas quando parar não é uma opção (na guerra, os pais que cuidam o bebé, o trabalho importante que não se pode parar) os indivíduos ultrapassam o “limite” e continuam num torpor, à espera de caírem para o lado a qualquer momento, mas não raras vezes, em vez do desfalecimento aparece é uma energia formidável que nos leva para outro plano.


(ver mais)

terça-feira, agosto 08, 2006

Planear o resto da vida

Há duas formas de planear o resto da vida. A mais comum é traçar o caminho da “segurança” e comprometer-se com ele. Casar e ter logo filhos, comprar um carro demasiado dispendioso, meter-se num empréstimo de habitação por décadas. Obviamente que cada um é livre de fazer as escolhas que quiser. Mas ao certo, o que quer o indivíduo que faz estas escolhas? Em raros casos saberá exactamente as consequências dos seus actos, mas valoriza bem o que pode deles adquirir, pelo que os sacrifícios que fará estarão compensados. Contudo, na maior parte das vezes as pessoas vêm-se apanhadas de surpresa. Dizem que querem ser pais e mães mas depois não param de se queixar da carga de trabalhos que lhes dá o bebé. Surpreendem-se com o encargo mensal que é o carro e a casa, como se alguém os tivesse obrigado a comprometerem-se com algo que não desejaram. Afinal, o que queriam? A hipótese que aqui se avança é que desejavam segurança. Pode parecer paradoxal porque algumas das escolhas até os colocam em situações de risco. Mas a segurança que se fala é de algo mais profundo, é a segurança de ter um sentido para a vida. Esse sentido para a vida resulta de compromissos a que não se pode fugir. O indivíduo assumiu responsabilidades para além dele mesmo o que o faz sentir ter atingido outro estatuto que, resto, lhe é reconhecido por outros.

A segunda opção é mais arriscada. O objectivo é, mesmo que inconscientemente, procurar um sentido para a vida também. Mas assume-se à partida que não se sabe como lá chegar. É um caminho errático que não raras vezes conduz os indivíduos de volta às opções “tradicionais” mas agora de forma mais madura, percebendo bem o que é o fundamental e o acessório. Contudo, não se pense que existe uma única solução tradicional, a constituição de uma família alicerçada na monogamia. Desde tempos imemoriais houve outras soluções seguidas por poucos e que, afinal, também se podem considerar tradicionais. Podem incluir o sacerdócio, a eremitismo, o missionarismo, e mesmo a vida de judeu errante mundo fora, sem rumo traçado, até o indivíduo se descobrir a si mesmo esquecendo tudo o que algum dia foi.


(ver mais)

terça-feira, agosto 01, 2006

A tradição

A tradição já não é o que era, pensaram os profissionais de marketing para uma marca de Whisky, e acabaram por descrever o lema de uma geração perdida, que pensou encontrar-se no estertor da sua irresponsabilidade. Gerações sufocadas por regimes castradores e de costumes impositivos respiraram a liberdade e acharam que podiam esquecer tudo o que era antigo, apenas a novidade era válida e digna de apreço. Contudo, após terem ganho a sua liberdade política, os indivíduos acharam que a libertação pessoal e por acréscimo a felicidade, era uma consequência inevitável. Não tinham que batalhar para conseguir algo, bastava que lhes tivessem retirado os grilhões do passado.

As pessoas sentem-se perdidas e nem percebem porquê. Olham para trás e vêm a tradição, que detestam porque acham que foi uma solução que o passado provou que não dava resultado. Ou então pensam que simplesmente é coisa morta e impossível de se retornar. A hipótese é a fuga para a frente, ir de encontro a algo que não está cá, a salvação que vem de fora em filosofias exóticas, em novas descobertas científicas, em práticas esotéricas, em ideologias políticas.

O indivíduo não se apercebe que mesmo tendo rejeitado a tradição ainda a segue em grande parte nos mais corriqueiros gestos. Coisas menores, pensar-se-á. Nas grandes opções de vida, as opções tradicionais têm um odioso em cima, casar, ter uma religião, educar os filhos. Antes de rejeitar tudo o que são os modos tradicionais será bom pensar na sua génese. Associamos a tradição sempre ao passado, a algo que sempre existiu e que não tem grande justificação. Contudo, no início de tudo não havia qualquer tradição. Passado algum tempo as sociedades já albergavam em si um conjunto de tradições que regulavam diversos aspectos da vida. Se avançarmos alguns séculos veremos que o conjunto de tradições alargou-se, se as sociedades ficaram mais complexas, mas que muitas das tradições anteriores já não existem ou estão bastante alteradas.

Por vermos as coisas numa escala temporal reduzida, muito egocentricamente dentro do nosso tempo de vida, pensamos que a tradição é coisa imutável. As tradições são em grande parte construções espontâneas dos indivíduos, sem uma inteligência superior a revelá-las. Por vezes, religiões e sistemas políticos cristalizam determinadas tradições já existentes e dão a aparência de terem sido eles a criá-las. Mas mesmo neste caso, não se deve partir do princípio que a tradição só existe porque é imposta. As tradições existem porque deram provas da sua validade em determinado contexto. Grande parte das tradições foram, em determinada altura, inovações.

Isto não quer dizer que a tradição não possa ter aspectos muito errados e altamente perversos. Mas se é assim, estão criadas condições sociais para que ela seja alterada. Devemos ser particularmente críticos para aqueles que impedem que as tradições se criem e desfaçam naturalmente, dentro de um quadro mínimo de valores instituídos. E como rejeita a sociedade uma tradição? Não o faz toda de uma vez, há sempre indivíduos que seguem à frente, que podem falhar rotundamente. É também uma questão de risco. Uma tradição insatisfatória mas que resulta pode ser substituída por uma muito melhor ou por outra que não resulte de todo. Há avanços, refluxos e muita incerteza. Por vezes tem que se começar quase tudo do zero, quando uma civilização é invadida e quase totalmente destruída ou quando opta por um regime revolucionário que tenta construir a sociedade perfeita de raiz.

E depois há alturas como a nossa, em que se rejeitou a tradição mas não se propôs nenhuma alternativa. Ou melhor, há muitas alternativas mas são sempre numa espiral facilitista que conduz a um niilismo profundo. A tradição começa, então, a ser rejeitada porque parece demasiado austera. Certamente algumas tradições o eram, mas criou-se a ilusão que se pode ter tudo sem fazer o mínimo esforço e muitas das críticas à tradição mais não são que um desculpar da preguiça e da cobardia. Paradoxalmente, este modo de vida sem desafios tornou-se o mais cansativo de todos e nitidamente as pessoas estão fartas do que são e do que as rodeia. Pensam, no entanto, que apenas ainda não tiveram a sorte de descobrir o truque que lhes irá dar a chave para o sucesso.

Que alternativas pode haver? Voltar, por desespero às antigas tradições? Pode nem ser viável porque algumas das condições estruturais já foram eliminadas. Além de que não tem sentido insistir em alguns erros do passado. Há que conhecer, primeiro que tudo, só depois decidir. Há que reconstruir as bases, transformar o que não funciona e voltarmos a nos abrir ao mundo de forma decidida, não como agora que vemos o exterior com desconfiança ou como salvação. A única solução que nos resta é tornar a vida mais difícil e criar desafios que agora nos parecem insuperáveis.


(ver mais)