quarta-feira, março 31, 2004

O azar de ter nascido português


Costuma dizer-se que o pessimista acaba por dar razão a si mesmo porque a sua atitude negativa vai conduzi-lo inevitavelmente ao fracasso. Para ser bem sucedido em algo, não é possível que se espere de braços cruzados pela sorte. Claro que há excepções, e todas as semanas há pessoas bafejadas por ela na lotearia, totoloto e jogos afins. Mas é muito pouco realista esperar por esta ventura. No entanto, tal é a maneira portuguesa.

Mas o português não se deixa estagnar e evolui para um estádio seguinte. Ressentido por não lhe sair a boa fortuna,sem ter feito algo por isso, revolta-se contra tudo e contra todos de forma suave e velada – e acaba por explicar o seu estado com acções exteriores a si mesmo. Na sua forma mais fatalista, diz apenas que nasceu com azar e de forma apática conforma-se e chora pelos cantos. Na sua forma mais viril, o azar passa a ser a justificação ideal para a criação de todo o tipo de ódios. No seu expoente máximo, propulsionado pela criatividade, esta atitude niilista e destrutiva acaba por ser vista pelos incautos como uma manifestação de grande carácter.

Deixar este caminho, que não leva a lado algum, não é fácil. Na verdade, quem enveredou por esta via já não pode falhar porque já nem tenta fazer seja o que for. Destruir é sempre fácil, umas vezes consegue-se menos, outras mais. É uma via de sucesso. A história da humanidade tanto é feita daqueles que tentam construir algo como dos outros que tentam destruir o que foi feito. Será que estou enganado ao pensar que o lado da destruição foi sempre o que teve mais adeptos?



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terça-feira, março 30, 2004

Sobre a Paixão de Cristo


Como não cristão que sou (a fase anti-cristã já lá vai), fico estupefacto por alguns comentaristas cristãos acharem despropositado ateus, como eu, verem o filme e tecerem comentários. Falam como se a vida de Cristo só a eles interessasse e dissesse respeito. Tal é um profundo disparate porque o cristianismo é o pano de fundo para toda a cultura ocidental. Mesmo se quisesse, não podia fazer de conta que o cristianismo não existe. Sou obrigado a gozar feriados cristãos, a ter um calendário cristão, a ter festas cristãs. Além disso, as pessoas ainda pensam muito de forma cristã.

Tinham-me dito que não se tratava de um filme anti-semita. Não concordo, a imagem dada aos judeus é péssima. No entanto, acho que o filme não provocará reacções anti-semitas, porque esta má imagem fica esquecida ao ver-se o desenrolar da paixão. Aquilo que mais vezes pensei durante o filme foi que uma religião que começou assim não poderia vir a dar algo de bom. Outro pensamento perverso que me passou pela mente foi que Cristo não sofreu tanto como muitas vítimas da Inquisição.

Parece-me significativo que o filme esteja centrado no sofrimento. Os flashbacks que ocorriam dão uma imagem serena e até humana de Cristo, o que considero uma evolução em relação a outras imagens que parecem ser de alguém que nunca esteve neste mundo (e talvez seja verdade). Correndo o risco de chocar os crentes, a vida de Cristo, comparada com a de outros mestres espirituais, parece-me incrivelmente pobre. A sua vida parece-me pouco inspiradora, e talvez por isso a exacerbação da paixão sirva para a tornar mais interessante. Acaba por ser mais uma história de poder do que sobre autêntica religião.

Cristo não me diz nada sobre como me devo sentar frente ao computador para trabalhar. Nem como devo reagir se dormi mal. Ou o que fazer se uma bela mulher me convida para algo que jurei nunca fazer. Cristo não me diz nada porque já nasceu perfeito.



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segunda-feira, março 29, 2004

Os últimos dias de Outono


Ao Inverno podemos associar o calor de uma lareira, o Natal, o Ano Novo e, cada vez mais, umas férias na neve – para muitos, agradáveis possibilidades. No entanto, o Inverno é quase sempre considerada uma estação maldita. Vento frio, humidade que fragiliza o corpo, chuva desagradável – é isto o Inverno, também. Talvez por isso exista uma certa melancolia pelos últimos dias de Outono, mais precisamente, aqueles dias que se sentem ser os últimos ainda com um calor agradável e em que a natureza se pinta de vários castanhos agradáveis.

Serve este intróito para estabelecer, de forma fugidia, um paralelo com a realidade social. Cada vez mais pressinto que também estamos nos últimos dias de Outono da nossa civilização. Com isto não quero dizer que vivemos num mundo perfeito que está em perigo por alguma ameaça exterior. Penso somente, esperando estar enganado, que a ameaça vem de dentro e coisas como o terrorismo apenas servem de catalisador numa reacção que não iniciaram nem vão acabar. Já expressei algumas vezes que a Europa poderia muito bem vir a ser governada por ditaduras sangrentas no século XXI. Imaginei este triste destino para daqui a umas décadas. Penso agora que isso poderá ocorrer muito mais depressa.

Sempre fiquei perplexo com as movimentações sociais que levaram à instauração de ditaduras. Se bem que as ditaduras militares podem ser instauradas pela força das armas, todas as outras têm por detrás algum tipo de apoio popular. Um mecanismo qualquer de defesa levava-me a acreditar que tais coisas deixaram de ser possíveis nas sociedades europeias actuais. Apesar de ter sido sempre um crítico do chamado ocidente, acreditava já ter este atingido uma maturidade que não lhe permitisse voltar atrás. No entanto, a realidade é óbvia. A natureza das pessoas não se altera de um dia para o outro, e tanto o sublime como o monstruoso de que são capazes têm foros de constância.

Todo este negativismo baseia-se na intuição de que já estão em decurso movimentações que nos conduzirão a um negro futuro. Em outras palavras, já está em andamento a Marcha do Apocalipse. Passando a coisas mais concretas, falo de apatia, má-fé e ódio. É raro encontrar alguém que não esteja carregado de apatia. Pensando nas pessoas que conhecemos, muitas delas poderão desmentir isto. Mas um olhar mais atento revela que a energia de alguns mais não é que ilusória. No fundo já desistiram mas não querem admitir.

O ódio e a má-fé andam de mãos dadas, justificando-se e desculpando-se mutuamente, ao mesmo tempo que se reforçam. No fundo, o ódio parece-me ser a única coisa que ainda anima muita gente. Talvez fosse um negócio rentável a abertura de clínicas para desintoxicação do ódio. A má-fé revela-se várias formas. Começa logo pelo extermínio da sensatez. Ser sensato, ponderado, justo, admitir ter dúvidas, evitar extremismos – incrivelmente, alguém assim passou a ser mal visto por quase todos. Apesar de em teoria todos concordarem que alguém de carácter deve possuir todas estas virtudes, numa situação concreta, quem não assumir uma posição dura, sem dúvidas, deixou de ter validade. Além disso, se for especialmente arrogante, insultuoso, fizer todo o tipo de previsões catastróficas, ignorar os factos e construir uma verdade alternativa, então, corre o risco de ser considerado um visionário, um novo líder.

Falo de pessoas banais, de intelectuais, de artistas, de políticos, de nós… Cedemos ao ódio, mas cedemos de uma forma que só vemos o ódio em outros. Lentamente, defendemos soluções que conduzem à auto-destruição. Pensei que a esperança poderia vir das artes, das novas demandas espirituais. Mas é esperança vã. Estas pessoas enfermam de um novo pecado original. O de se alhearam ou mesmo oporem às questões de poder. Se bem que não cair na tentação de usar o poder possa ser uma virtude, fazer de conta que a questão do poder não é essencial para a vida humana, ou então, pura e simplesmente, estar em eterna oposição contra O Poder (governos, tribunais, instituições), acabam por ser atitudes cancerígenas para toda uma cultura – e em última análise, uma acto de poder em si.

Ao mesmo tempo que espero estar enganado, apercebo-me que talvez este Inverno já tenha chegado. Já não me sinto a viver na mesma liberdade que tinha há cinco anos atrás. Quem me limita a liberdade são as pessoas (mas nunca os amigos), existe sempre um tom de censura no ar. Assim como uma grande ameaça velada. Penso nas crianças de agora que possivelmente irão acabar por viver num Inferno por nós criado.



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terça-feira, março 23, 2004

Confrontando o desemprego nos olhos


Um homem de meia-idade abordou-me na rua. De ar saudável e vagamente bem vestido, imaginei que me fosse perguntar pela localização de alguma rua. Disse-me que estava desempregado e pediu-me uma pequena ajuda. Pedi-lhe desculpa e saí dali o mais rápido possível. Queria mesmo ajudá-lo mas uma insuportável agonia afastou-me. A pessoa em causa tinha um ar humilde e percebi que não era um pedinte por opção. Uma imensa sensação de vergonha invadia-lhe o rosto, como se a sua dignidade tivesse sido roubada. Num instante, passou-me pela mente a vida hipotética daquele homem, que sempre deve ter trabalhado e tido uma vida normal e agora devia estar só e sem emprego. De forma cobarde, não o ajudei e passei por mais um que não sabe o que é a compaixão.

Durante todo o dia fiquei constrangido ao pensar no drama daquele homem. Mas também me veio à mente os recentes cartazes do PS. Depois dos ataques infantis a Pedro Santana Lopes, o PS mudou de estratégia, com a ideia dos cartões amarelos ao primeiro-ministro. A ideia não me convence, e parece-me idiota e pouco original. Mas ainda assim parecia-me uma evolução positiva e talvez um indício do PS estar no bom caminho, por finalmente estar a fazer oposição tocando em pontos fracos do governo, como a perca do poder de compra, a saúde e o desemprego. Claro que é sempre uma questão de falta de gosto, uma vez que o PS é um grande responsável por estas situações. No entanto, aquilo que até me parecia ter algo de positivo, depois de me ter confrontado com o homem desempregado, passa a ser completamente repugnante. Não são os cartazes com um cartão amarelo, friamente pensados por uma equipa de marketing, que vão resolver os problemas. E num repente, pareceram-me apenas uma utilização nauseabunda das dificuldades alheias.

Fez isto me lembrar de outra ocasião, há uns 2 anos atrás, quando fui a um hipermercado e me pus a comprar muitos CD sem olhar ao que gastava. Na fila para pagar, um surto raro de clarividência invadiu-me e apercebi-me da futilidade em gastar tanto dinheiro, quando não tinha quase tempo algum para ouvir os CD. Olhei então para as pessoas que estavam à minha frente. Um casal jovem com um filho bebé. As suas roupas eram pobres, gastas e as suas comprar parcas, quase tudo para a criança. Era evidente que passavam algumas dificuldades e cada euro era bem contado. Estive mesmo para me oferecer para pagar a despesa deles, muito menor que a minha em coisas supérfluas. Mas receei ser mal entendido. Mais uma vez acobardei-me. Não devia ter tido medo de ser mal entendido. Devia ter subido para cima de uma caixa e gritado para o hiper inteiro: «Se vos perguntarem, vocês dirão que a vida está cada vez mais difícil e tudo está muito caro. No entanto, enchem os carros com coisas disparatadas que não vos fazem falta alguma. Deviam ter vergonha de vós mesmo, assim como tenho vergonha de mim. Este jovem casal sabe o que é passar dificuldades, não falem em nome deles.» Mas é mais fácil falar aqui…



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quinta-feira, março 18, 2004

Procuram-se novos protagonistas


Evito telejornais. Cada vez mais me repugnam. Constato que me saturei dos protagonistas do plano internacional. Sempre os EUA, a Europa, o Médio Oriente. Um pouco da China, das Coreias e do Japão, e uns salpicos da América do Sul. Acima de tudo, saturei-me da forma como tudo é apresentado, sempre de forma tendenciosa, sempre de maneira a que se tome partido. Invariavelmente, vejo uma notícia e imagino o que terão omitido, o que terão deturpado. Simplesmente, já não acredito.

E penso em África. Esquecida, humilhada, saqueada. É como se todo um continente tivesse deixado de existir, tal a pouca importância que se lhe dá. Muitas vezes dou por mim a visualizar o globo terrestre e no lugar de África já nada existe, o oceano transbordou por cima. Mas talvez tenha que ser África a emergir das profundezas e começar uma nova humanidade outra vez.



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segunda-feira, março 15, 2004

Um pedido de desculpas à Al-Qaeda


A Espanha virou à esquerda. Confesso que se fosse eleitor espanhol seria provável também alinhar pela alternativa. Mas apenas por achar que três mandatos consecutivos para a mesma força partidária pode ser algo muito nocivo, criando-se vícios governativos que se podem institucionalizar por gerações. Contudo, esta não foi a razão dos eleitores terem mudado o seu voto. As sondagens antes dos atentados em Madrid não deixam margem para dúvidas que foi este o acontecimento responsável pela reviravolta.

A associação de ideias é simples. A partir do momento em que as evidências da autoria dos atentados recaíram sobre a Al-Qaeda, eles só aconteceram devido ao alinhamento espanhol com os EUA. Como tal, há que punir os responsáveis pelo alinhamento.

Voltemos um pouco atrás. O terrorismo não começou com a queda das torres gémeas em Nova York. No entanto, este acontecimento levou muitas pessoas a sentirem-se na obrigação de tomar posição. Na Europa e um pouco por todo o mundo, a principal posição pode-se sintetizar como: “Eu sou contra o terrorismo mas os principais responsáveis pelo seu aparecimento são os EUA.”

As ideias variam bastante mas há um padrão base comum a muitas. A tese central diz algo como: os EUA são o principal interventor a nível internacional, fazendo-o de várias formas, como a económica e a militar. Este imperialismo causou uma reacção natural de repúdio, que no seu extremo toma a forma do terrorismo. Mais tarde ou mais cedo elas iriam actuar. Os EUA, com a infelicidade de terem alguém como Bush na presidência (o homem que mais adjectivos negativos recebeu na história da humanidade), agiram de forma vingativa e cega, causando grande destruição e morte. Culminaram com a invasão do Iraque, inventando mentiras como o combate ao terrorismo e a existência de armas de destruição maciça, apenas com a intenção de se apoderarem das riquezas deste país. Os EUA só estão a colher o que semearam. Qualquer alinhamento ao lado dos EUA é no mínimo estúpido e o mais certo é não passar de um premeditado acto criminoso com fins usurpadores.

Constato que quem pensa assim não irá mudar de opinião por nada. Poderá eventualmente torná-la cada vez mais expressiva e radical e depois, num futuro próximo, esquecê-la de um dia para o outro. Constato também, desiludido, que nesta altura já não tem qualquer importância saber se este raciocínio (a que alguns chamam anti-americano) possui alguma veracidade. O certo é que a maioria das pessoas pensa assim e muito do nosso futuro depende desta crença, independentemente dela ser verdadeira ou falsa.

Os atentados em Espanha foram um primeiro ensaio para a Europa. Os espanhóis votaram naquilo que pensam dar mais segurança e foi um acto natural. Se tivesse sido em Portugal os resultados ainda teriam sido mais expressivos, se é que alguém tivesse coragem de sair de casa. A Al-Qaeda, partindo do princípio que foram mesmo os responsáveis pelos atentados, estará bastante satisfeita. O número de mortos e feridos foi grande, e o seu mediatismo enorme. Grande transtorno, medo e variações na bolsa. Para os membros da Al-Qaeda a votação espanhola foi como que um pedido de desculpas. Um pedido de apaziguamento que eles acharão patético, mas talvez resulte no curto prazo.

O novo primeiro-ministro espanhol, Zapatero, deu bastante ênfase ao corte da ligação umbilical com os EUA. A declaração vai de acordo com as suas intenções e com a intenção da maioria do povo espanhol, uma bela comunhão. Talvez devesse ser feita a vontade da maioria. Por toda a Europa ninguém está ao lado dos americanos, que se assuma isso de uma vez. Seja o local onde me encontre, sempre que se fala de algo vindo dos EUA, logo de seguida vem uma série de insultos e comentários jocosos. Já ninguém suporta os EUA, que se faça um referendo para aboli-los, que se proíba a sua entrada nos países, que se boicote os seus produtos. Se for preciso, que se faça guerra contra eles, seja ao lado de quem for. Afinal, não são eles a maior ameaça à estabilidade do mundo?

Suspeito que mais tarde ou mais cedo vamos cair neste cenário. Quem sabe se não é um bom motivo para escrever um livro. Talvez o motivo de que andasse à procura. O século XXI poderá ficar conhecido como o do desmembramento total da Europa e do aparecimento de mais ditaduras sangrentas. Às vezes, tenho um pensamento sombrio de ser isto que todos procuram. A cultura ocidental está demasiado marcada pelo desejo do apocalipse.

Constato agora, chocado, que a racionalização de tudo isto faz parecer irrelevantes as mortes ocorridas. Fica apenas uma leve sensação de medo, por nos poder acontecer a nós também, e a emoção para debater o assunto de forma acalorada. Nós, humanos, conseguimos sempre levar a novos extremos o sentido da palavra deplorável.



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terça-feira, março 09, 2004

Racismo à portuguesa


Há poucos dias passava na rua e cruzei-me com duas raparigas, aparentemente chinesas. Falavam animadamente e começaram a rir de forma um pouco sonora. Um bom português, com seu bigode e barriga avantajada, que se encontrava parado (a principal manobra de trabalho em Portugal), reage em voz alta: «Oh meninas! Isto aqui não é para fazer barulho!» A minha leitura, mas isto sou eu armado em esperto, é que ele pensou: Então o raio das chinesas vêm para o nosso pobre país, que tem tantas dificuldades, roubar-nos os postos de trabalho e viver às nossas custas e ainda por cima põem-se a fazer barulho como se isto fosse delas. Temos que as pôr no lugar antes que seja tarde demais.

Um outro acontecimento refere-se a um conhecido meu (ninguém que o conhece lê este blog, pelo que a sua identidade fica preservada), que se exalta com frequência com o drama dos palestinianos, que não suporta os israelitas que massacram o pobre povo. Não quero iniciar aqui uma discussão sobre este assunto tão debatido, encetando por uma explanação das razões de um lado e de outro – até porque me parece mais uma questão de falta de razão de ambas as partes. Vi essa pessoa folheando o jornal, como o faz todos os dias com muita atenção. Há uma notícia sobre o célebre massacre do Ruanda (1 milhão de mortos em 100 dias), mas nem por 5 segundos ele se detém nela. Mas compreende-se, afinal são pretos e parece que nem têm ideologia. Talvez não fosse esta a ideia de Nietzsche quando afirmava que o super-homem devia criar os seus próprios valores.



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terça-feira, março 02, 2004

Para quê?


Para quê mentir quando se pode ser criativo?

Para quê ter inveja quando se pode aprender com os outros?

Para quê ter orgulho quando se pode ter dignidade?

Para quê chorar quando se pode endireitar as costas e olhar em frente?

E para quê amar quando se pode aproveitar a vida?



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segunda-feira, março 01, 2004

Um pé no cinema


Deve ser difícil encontrar uma pessoa para avaliar cinema pior que eu. Não que não saiba avaliar a riqueza do argumento e recentemente a fotografia tem me ajudado na apreciação das questões estéticas. Mas de resto sou um observador medíocre na apreciação de interpretações, planos, e essas coisas.

O Regresso do Rei ganhou todos os óscares, que eu nem sei quais são. Desiludi-me com a primeira parte (A Irmandade do anel) por ter cortado brutalmente sequências do livro. Gostei muito da segunda parte, As Duas Torres, porque já me tinha esquecido do livro. A terceira parte d’ O Senhor dos Anéis é talvez a mais fraca. A longa história decorre num universo completamente criado pelo autor, com muito de inesperado e surpreendente, mas o final é previsível (seria o único decente?).

É curioso que dois filmes recentes tenham sido rodados no Japão. O muito comentado Lost in Translation e o mal amado Last Samurai. Lost in Translation é o tipo de estória que me agrada, que pode muito bem ser real e invulgar ao mesmo tempo. De facto, o pior do filme é a tradução portuguesa, que me escuso de colocar aqui. Porque Sofia Coppola pareceu-me querer propositadamente recusar um filme/argumento de amor, traição, drama ou qualquer outra coisa “extraordinária”. É um filme apenas sobre a vida e, quanto a mim, um pouco sobre empatia.

O Japão moderno serve de cenário de fundo, um cenário estranho, complexo e por vezes demasiado simples. O filme não explica nada, apenas expõe. Não diz que é bom ou mau, nem melhor ou pior. Mostra, apenas. As duas personagens principais passeiam-se pelo filme e nunca chegam a ter um relacionamento. Estão juntas apenas porque há uma empatia entre elas. E para mim a empatia é mais importante que todos os sentimentos que foram inventados. Para um filme ser interessante as personagens não têm necessariamente que subir aos céus ou descer aos infernos.

Last Samurai é mais difícil de comentar aqui, porque teria muito mais para dizer. É um filme difícil de classificar porque mistura coisas muito boas com outras mal estudadas. Mas tanto umas como outras são de identificação quase impossível para a maioria dos espectadores. O filme não segue os factos históricos, adulterando-os um pouco para tornar a estória ficcional que se lhe sobrepõe mais dramática. Tom Cruise, como americano, nunca teria ido para o Japão daquela forma, porque os modelos que os japoneses queriam aprender eram franceses e prussianos. O general samurai, depois de ter perdido a batalha no início do filme, pede para lhe cortarem a cabeça. Isto acontecia mesmo, mas não da forma como é mostrada, em que a cabeça rebola no chão. Nestas situações, o corte do pescoço era efectuado deixando uma réstia de pele, para a cabeça não se separar completamente do corpo, o que era considerado indigno. Por isso, alguns recusavam-se a fazê-lo se não tivessem a habilidade suficiente.

Como coisas muito boas do filme, em primeiro lugar saliento o desempenho físico de Tom Cruise (como actor não sei avaliar). Algumas das coisas que ele faz, que poderão parecer simples, normalmente demoram anos de treino intenso a aprender. Outras coisas extraordinárias são pequenas sequências de Kyudo (tiro com arco, sem ser em batalha), de Aiki-jujitsu, kendo, para além das cenas de luta. O samurai devia ser despojado de apegamentos em relação à vida e à morte, e isso também transparece no filme.

Curiosamente, há uma coisa em comum nos dois filmes. Em Lost in Translation a jovem filósofa visita um templo onde cantavam algo. O último samurai, em determinada altura, sózinho, recita algo. Em ambos os casos tratava-se do Sutra do Coração (Hannya Haramita Shingyo). Se já ouviram falar que “A forma é o vazio e o vazio é a forma”, é daqui que vem, sendo consideradas as próprias palavras de Buda.



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