terça-feira, maio 24, 2005

Futebol-religião Benfica (2)


Os media só encontram duas formas de nos mostrar o que é um adepto desportivo. Ou com os comentadores profissionais, mestres da palavra que discursam sobre aspectos administrativos, tácticos e arbitragens. Ou com o adepto “vulgar”, que normalmente é o mais bronco que estiver à mão. Estes exemplos, mostrados até à exaustão, deixam na penumbra um outro tipo de adepto mais especial. Associa-se aos adeptos desportivos, gritos, cânticos, insultos, mas este tipo de adepto é mais facilmente reconhecido pelo oposto: pelo silêncio e pela contemplação.

Alguns não conseguem compreender a razão de se chamar Catedral ao estádio do SLB. Poderão pensar, erradamente, que Catedral é uma forma de dizer que o estádio de SLB é maior que o dos outros clubes e chamar-lhe de Catedral é apenas uma forma arrogante de exprimir isso. Contudo, um local só o é, em termos de sentido, quando é reconhecido como tal. O que nos foca novamente no adepto. A chave está na atitude do adepto e não no local em si. Este fim de semana, calhou por razões do “destino” que a Catedral fosse no Estádio do Bessa.

É neste particular que está toda a chave que leva o futebol a poder largar a tribo para se juntar à religião. O verdadeiro adepto quando se dirige para o Estádio fá-lo em silêncio, porque sente que está a deixar a rotina quotidiana para subir a um patamar mais elevado da existência. É provável que conte em voz baixa algumas estórias que sabe do clube, jogadores, a quem o acompanha. Sabe de vários pormenores que passam despercebidos à maioria. É paciente, sabe esperar horas se for necessário. Aliás, até faz isso de bom gosto sem mostrar ansiedade. Este adepto é um paradoxo em si. Porque é o que tem mais fé mas, ao mesmo tempo, é também o mais realista. Conhece os jogadores a fundo, a sua valia no momento, o seu potencial, mas também as suas carências. Olha para os clubes rivais em termos pragmáticos, não como inimigos sem rosto.

Já dentro do estádio, novamente reina a contenção antes do início do jogo. O verdadeiro adepto quando apoia um seu jogador fá-lo com toda a consciência possível, não apenas por ser do clube. O verdadeiro adepto sintoniza-se com cada jogador, compreende-o se ele está a passar um mau momento. Em geral, a equipa adversária não é preocupação do verdadeiro adepto (aqui se percebe que o SLB é um clube diferente, por os adeptos não precisarem entoar cânticos de outros clubes com o discurso alterado de forma insultuosa). Aquela vaia monumental que se costuma ouvir na televisão é ilusória. Quem for ao estádio e se voltar para o público percebe que é uma reduzida minoria que alimenta aquele chinfrim, normalmente de gente nova com muita adrenalina. O golo e a vitória também são vividos de forma especial intensa por este tipo de adepto, impossível de explicar por quem não partilha do mesmo estado de alma. No entanto, o verdadeiro adepto possui uma atenção felina para o jogo, é exigente com os seu jogadores, não se limitando a assobiar o árbitro.

Quem já viu futebol em vários estádios, percebe que ir à Catedral com uma grande multidão é uma experiência diferente. Não é só pelo efeito da multidão, mas também pela presença deste tipo de adeptos. O futebol vivido assim pode não ser propriamente uma religião, mas apresenta características que só se encontram em práticas religiosas e espirituais.


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segunda-feira, maio 23, 2005

Futebol-religião Benfica (1)


Há quem identifique nos movimentos em redor ao futebol o fenómeno tribal. Tal identificação terá algumas pernas para andar, mas é um caminho fácil, porque existem muitas outras manifestações sociais onde o tribalismo se verifica. Acontece que o futebol é diferente, e se quisermos explicar alguma coisa temos de encontrar o que existe para além do tribalismo que justifique esse “algo mais” que existe no futebol.

Dizer que futebol é religião, apenas, é um erro. Não é erro apenas porque todos sabemos que se trata de um jogo. É também erro porque, considerando o futebol em termos latos, o fenómeno do “ser adepto” é explicado pelo tribalismo em muitos casos. Contudo, a partir de certa dimensão entra-se no domínio religioso. Essa dimensão estende-se em dois patamares distintos. Um deles, voltado para o exterior e que abordo neste primeiro post sobre o assunto, é facilmente observável. Tem a ver com o número de adeptos e a forma natural como ocorreu a sua expansão. Não é difícil de identificar em Portugal o SLB como o clube de maior expressividade neste ponto de vista.

Ao contrário do que muitos querem fazer crer, o SLB não foi o clube do antigo regime. Muito pelo contrário, o SLB foi a única força que conseguiu criar um espaço de liberdade num país amordaçado, e fê-lo contra o regime. Nos anos que se seguiram ao término da segunda guerra mundial, o SLB correu o sério risco de ser encerrado, por estar cheio de oposicionistas. O clube foi despejado de vários locais e conseguiu uma proeza que seria considerada impossível nos tempos de hoje: construir um estádio apenas com o dinheiro dos sócios, sem qualquer subsídio-dependência envolvida.

A popularidade do SLB levou a que muitos homens de negócios se lhe quisessem colar na ânsia de terem protagonismo social, tendência que se manteve até hoje. Mas, ao contrário do que acontece em outros clubes, nada no SLB têm tendência a eternizar-se e os benfiquistas sabem reconhecer quando erram. O confronto entre o Estado-Novo e o SLB foi amenizado com alguma cedência de ambas as partes. Contudo, foi o próprio regime que teve de fazer as maiores adaptações, que lhe passaram a ser proveitosas depois da afirmação europeia do SLB. Novamente, esta é uma tendência que também se verifica com os políticos de hoje, que gostam sempre de se colar às vitórias desportivas. Contudo, o SLB nunca prestou vassalagem ao regime, a qualquer que fosse. É curioso ver que mesmo depois do 25 de Abril o SLB continua a ser um clube incómodo para os regimes, mesmo democráticos, que têm nas suas principais figuras quase sempre adeptos dos outros “grandes”. Parece que a dimensão do SLB assusta, e mesmo quando os nossos líderes máximos executivos (PM) são benfiquistas, parecem comportar-se como se isso fosse um handicap.

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sexta-feira, maio 20, 2005

Um mundo em mudança (10)


A CHINA

Em 1421 partiu uma armada chinesa, comandada pelo Almirante eunuco Zeng He, que tudo indica ter dado a volta ao mundo, chegando mesmo ao ponto de estabelecer colónias em várias partes da Austrália e do continente americano. A armada inicial dividiu-se em várias, cada uma delas tendo realizado feitos extraordinários. Poucas embarcações voltaram, e quando o fizeram, razões de política interna ordenaram a sua destruição, bem como de todos os relatos das viagens. A China fechou-se e voltou a ser um gigante adormecido. Quando os portugueses se fizeram aos mares, é quase certo que já tinham na sua posse um plano de “descobrimentos” bem delineado, baseado nas cartas chinesas (a ligação é feita por cartógrafos venezianos, e o prestígio que a coroa portuguesa tinha conseguido junto ao papa devido à conquista de Ceuta).

Em 2021 a China deverá fazer as comemorações dos 600 anos da partida dessa armada, com os livros de história já corrigidos, uma vez que existe um entusiasmo mundial de vários académicos sobre este assunto. Por essa altura, a China poderá finalmente acordar, talvez como nunca o tenha feito na sua história de milénios. Das culturas antigas, foi a única que se manteve. Conseguiu passar por várias crises, invasões, longos períodos de apatia e comodismo, que fizeram que alguns fundamentos se tenham perdido, ficando a forma. O grande teste de resistência deu-se no século XX, um século atribulado, que teve o seu paroxismo na revolução cultural.

Quem leu relatos dos acontecimentos relativos à revolução cultural, deve ter pensado que se tratou na machadada final na cultura chinesa. A China passaria a ser como a Grécia, Itália (Roma), Egipto, Irão (Pérsia), que se reclamam herdeiros de algo que já não são, sentem ou sequer compreendem. Contudo, nem a brutal revolução cultural conseguiu eliminar a China antiga e criar uma nova. Há sempre formas de esconder objectos, livros e documentos, mas acima de tudo, conseguiram guardar várias pessoas em si toda uma infinidade de tesouros, de saberes, técnicas e sabedorias milenares.

Obviamente a maior parte dos chineses não faz parte desta elite que guardam o tesouro. O regime ainda é de ditadura e o trabalho escravo é uma realidade de milhões e milhões. Mas as mudanças já são evidentes nesta altura e não é uma previsão surpreendente colocar a China dentro de 15 anos uma das maiores potências mundiais, talvez já sobre um regime liberal. Aliás, quando se fala na ética protestante e no Capitalismo, talvez seja ainda mais fácil fazer a relação entre o Capitalismo e as religiões com maior expressão na China, o confucionismo, o taoismo e o budismo. Especialmente o confucionismo, que para os ocidentais é mais assemelhado a uma filosofia de vida do que a uma religião, com regras práticas de bom senso. Tal não é difícil de compatibilizar com o liberalismo. Talvez seja a China comunista que irá acabar de vez com o cisma ideológico.


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quarta-feira, maio 11, 2005

Um mundo em mudança (9)


PARA BOM ENTENDEDOR

Os ditos populares caíram em desuso. Uma das razões óbvias é a falta de causas populares, que é como quem diz, deixaram de existir causas universais. E a vida moderna já não se compadece com uma série de receitas politicamente correctas, do género “Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer” ou “Grão a grão enche a galinha o papo” ou ainda “O sol quando nasce é para todos”. Contudo, há uma destas expressões que me parece sintomática de alteração de comportamentos a outro nível: “Para bom entendedor meia palavra basta.”

Falar por meias palavras hoje em dia, sendo compreendido, só será possível dentro de um grupo bastante homogéneo de pessoas, que têm rotinas semelhantes, incluindo processos mentais bem treinados. Nesses casos, a meia palavra imediatamente faz soar uma campainha que nos conduz ao sítio certo. Contudo, numa conversa normal isso deixou de ser possível.

As razões disso acontecer são várias e já aqui as referi várias vezes. Já não seguimos todos as mesmas referências culturais, nem temos hábitos tão semelhantes nem sequer a partilha de interesses é alargada. Aumenta o individualismo, a arrogância, mas também se quebra um pouco o “efeito do rebanho”, tal como a hipocrisia. Perde-se também a subtileza, que era antes uma forma eficaz de distinguir os níveis culturais e, sobretudo, a sensibilidade das pessoas. Há aqui resultados paradoxais porque se estamos cada vez mais individualistas e percorrendo caminhos mais isolados, também em outros aspectos estamos mais indiferenciáveis.

Claro que não há paradoxo algum. Tornou-se apenas difícil rotular os outros, o que não os torna todos iguais. As pessoas que antes eram boas ou más, amigas ou hostis, agora são uma névoa perpétua, que nos surpreende continuamente pela positiva e pela negativa. Contudo, esta tendência individualista e solitária não será propriamente negativa. Para termos um olhar mais positivo, teremos que relativizar. A nostalgia faz-nos pintar o passado de cores mais brilhantes e olvidar os podres que nos corroíam. A subtileza que antes era bem mais fácil não era propriamente sinónimo de maior discernimento mental. Simplesmente era um mundo mais fácil, restrito, em cada um sabia bem o seu lugar e o futuro não tinha grandes novidade, assim como as questões fundamentais já estavam estabelecidas. Fazendo uma metáfora, o cego que se encontra numa casa com duas assoalhadas conseguirá orientar-se muito melhor que outro que está num palacete com divisões sem fim. E o individualismo, que tão facilmente criticamos, faz-nos esquecer que anteriormente os movimentos de grupo eram mais fortes porque as mentalidades eram mais tacanhas e os horizontes mais curtos.

Apesar de comunicar ser mais fácil que nunca, as dificuldades em nos fazermos entender também aumentaram na mesma proporção.

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segunda-feira, maio 02, 2005

Futuro minado


Boa parte das pessoas com quem privo são professores. Não é de meu gosto falar de questões de trabalho, mas tenho notado neles com o passar dos anos um desgosto cada vez maior em serem professores. Alguns pensam mesmo em deixar a carreira, o que seria uma perda apreciável já que os reconheço como bastante superiores à média. As razões que levaram a este estado de coisas serão várias. Contudo, isto não deve servir para fugirmos à questão concluindo que nada se pode fazer, até porque boa parte das razões se devem a erros que se foram acumulando e de consequências bem previsíveis.

Os nossos sucessivos governos persistem na atitude paternalista em relação às escolas. As escolas obedecem ao ministério, fundamentalmente. Isto parece contrariar as medidas de maior autonomia que têm sido conferidas, mas no essencial nada se alterou. As escolas não contratam professores, não podem gerir o seu quadro docente, não tem autonomia curricular e logo não têm possibilidades de se diferenciarem das restantes. Contudo, o papel dos pais talvez seja ainda mais prejudicial.

Desde sempre que se mostrou consensual que os pais têm um papel a desempenhar. De forma demagógica, sucessivos governos pensaram que isso se promovia dando aos pais o poder de chantagem sobre os professores. O pai ou mãe, que antigamente pedia para o professor bater no filho sempre que necessário, hoje em dia está invariavelmente ao lado do filho. Grande ilusão de se pensar que isto é um verdadeiro apoio. Os pais não se interessam se os filhos são mal educados, se insultam os professores, se não se esforçam, se não aprendem. Os pais modernos pensam que o sucesso escolar se mede pelas pautas e farão tudo por tudo para as notas serem o desejado.

A consequência é que os professores honestos estão envolvidos em constantes conflitos, são até mal vistos pelos próprios colegas. O professor que dê ao mau aluno (que até tem boas possibilidades de ser mal comportado) a nota suficiente para passar, tem a vida facilitada. Não terá com o mesmo aluno anos a fio, não terá de aturar os pais que desculparão o filho e culparão o professor com o primeiro argumento que lhes vier à cabeça.

A introdução de exames nacionais poderia levar estes supostos pais (não se percebe porque foram pais se é assim que olham para o futuro dos filhos) a fazer um simples raciocínio. Não basta o aluno, por formas meio ilícitas, ter uma nota razoável na pauta, será preciso uma eficaz consolidação de conhecimentos. Talvez quando faltarem umas semanas para o exame acordem para a situação. Aí voltarão a culpar a escola e os professores, por não ensinarem nada, mas nunca se lembrarão que foram eles que durante o ano lectivo ajudaram a minar o ensino do seu filho, que promoveram os professores “facilitistas”.


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