João Eira questionou-me como comentava um post no Abrupto sobre cultura japonesa. O post é o seguinte:
Na não-ficção, comprei uma tradução francesa de Peter Handke, intitulada Autour du Grand Tribunal sobre os julgamentos do TPI em Haia, e um livro de Haruki Murakami intitulado Underground sobre os ataques com sarin no metro de Tóquio. Não sei se este livro é bom ou mau, mas o subtítulo "The Tokyo gas attack and the Japanese psyche" interessou-me, porque dificilmente tenho mais a impressão da alteridade cultural do que quando vejo qualquer coisa japonesa. Filmes, banda desenhada, anime, desenhos animados. Aquilo é outro mundo com um traço de sado-masoquismo e de violência muito alheio à cultura ocidental. Como não os percebo, interessam-me.
Sobre o post interessa-me falar sobre a estranheza com que se encara a cultura japonesa.
A cultura japonesa é influenciada muito pelo budismo e pelo xintoísmo. Estas "culturas" convivem muito bem mas são bem diferentes. O xintoísmo é uma religião animista sem fundador, originalmente sem escrituras sagradas, sem dogmas e até sem nome. O xintoísmo dá o ar exótico ao Japão, com os seus mitos, cerimónias, rituais, e também com as Tori, as famosas portas de madeira à entrada dos santuários, compostas por duas colunas suportadas por duas vigas. É a religião do povo e da cultura popular, da adoração ao monte Fiji. Mas em 1868 o imperador Meiji tornou o xintoísmo a religião nacional, com exaltação da raça japonesa e da divinização do imperador. O xintoísmo, assim deturpado e afastado da sua raiz popular, foi um dos principais responsáveis por levar ao Japão a um crescente envolvimento militar além fronteiras, que culminou na sua participação na segunda guerra mundial.
Mas isto é apenas uma parte da questão. O xintoísmo nunca se espalhou além das fronteiras do Japão, não é uma religião universal. Para os próprios japoneses, o xintoísmo é a religião das grandes cerimónias (casamentos, funerais, algumas cerimónias anuais) e das pequenas coisas que lhes passam despercebidas. Quase todos os xintoístas são ao mesmo tempo budistas. O budismo acabou por ser a filosofia que disse aos japoneses como viver em cada momento.
Ao falar de budismo japonês, muitos fazem imediatamente a associação ao zen. Tal precisa de esclarecimentos. O zen não foi a primeira forma de budismo no Japão, não é uma corrente nascida no Japão e nem sequer é a forma mais popular de budismo neste país. O budismo foi introduzido no Japão no século sexto, no que viria a tornar-se a escola da Terra Pura. Trata-se da forma de budismo que a grande maioria dos japoneses segue. É dada uma ênfase à devoção, às cerimónias, à leitura de sutras. Apesar do seu sucesso, a sua influência na cultura japonesa não foi tão grande como a do zen, como mostrou D. T Suzuki.
O zen ganhou forma na China com a chegada de Bodhidharma em 520 DC. Este monge indiano veio a tornar-se no primeiro patriarca do zen (Chan em chinês), criando uma nova corrente, que ao mesmo tempo era uma ruptura e uma renovação do budismo. O zen adaptou-se à cultura local, ao confucionismo e recolhendo elementos do tauismo. O zen é talvez a filosofia de vida mais simples e mais directa que foi descoberta. É a filosofia do aqui e do agora. Mas filosofia é um nome pouco adequado, é uma prática que põe a sua ênfase na meditação sentada - zazen. O zen só entrou no Japão cerca de 700 anos depois da "chegada de Bodhidharma ao oriente", quando na China já começava a existir um declínio desta prática. Em especial, Dogen foi o principal responsável por esta nova revitalização. O zen iria impregnar todos os domínios da sociedade japonesa. Cerca de 700 depois, o zen vem para o ocidente e começam a aparecer os primeiros mestres ocidentais no século XX.
Actualmente, o nome "Zen" é amplamente divulgado no ocidente. A palavra tem uma sonoridade agradável e misteriosa. Serve de nome a perfumes, bandas de rock, equipamento electrónico... Para outros, zen é algo misterioso e transcendente, usando a palavra para criar a ambiente e, presumem, algum requinte. Alguns mais esclarecidos já leram uns livros sobre o assunto e possuem uma curiosidade intelectual, conhecendo um pouco das artes zen, da poesia, dos jardins zen, da caligrafia, o teatro No, a tiro com arco, o arranjo floral, etc. Mas no zen é dada pouco importância ao conhecimento intelectual, a prática é o fundamental. Alguns experimentam umas sessões de zazen, mas a sua dureza fá-los desistir. E o zen nada dá, apenas tira, como disse uma vez o mestre Taissen Deshimeru a alguém que lhe perguntava o que lhe dava o zen.
Coisas que nos parecem muito evoluídas para nós, só ao alcance de espíritos eleitos, aparecem nos desenhos animados japoneses para crianças. Em pano de fundo existem conceitos como o vazio, o desprendimento, a mudança contínua, a evolução espiritual, o abandono do eu, o respeito pelos mestres. Pode ser subtil, muitas vezes vendo-se pelo que não se faz e não se diz e pela não ocorrência do mais esperado nem do menos esperado.
Os filmes, animações e bandas desenhadas japonesas parecem muitas vezes caóticas, violentos e com demasiada destruição. Mas aqui há alguns equívocos. A cultura japonesa tem muitos elementos de brutalidade mas não de violência, porque a sua herança é guerreira e não lutadora. A destruição em parte explica-se em muito pelos terramotos aos quais o país é frequentemente sujeito, talvez até mais que pelas bombas atómicas da segunda guerra mundial. Numa animação japonesa, em 5 minutos pode existir uma luta entre guerreiros, uma cena erótica, uma cómica, uma infantil, uma espiritual. Será isto caótico ou será que caóticas são as mentes que não conseguem absorver tudo isto? Trata-se de uma cultura que aceita aquilo que o homem é, aceita o corpo, aceita a criatividade, aceita os defeitos, as contradições.
Wenceslau de Morais foi um português que viveu e se encantou pelo Japão, depois de ter andado um pouco por todo o oriente sem sentir qualquer entusiasmo pelo que via. Os seus livros falam da alma japonesa. Recentemente, pessoas que conheço foram ao Japão. Disseram que se sentiram como em casa, talvez por conhecerem os fundamentos da cultura japonesa e a sua universalidade, muito mais importante que os pormenores exóticos. Compreender o Japão universal é algo essencial para os portugueses completarem a sua história.