domingo, outubro 28, 2007

The show doesn’t need to go on

Depois de ter colocado fim ao O Purgatório pensei continuar este blog, fazendo guerra cultural. Contudo, uma reflexão mais apurada fez-me ver que ainda não atingi o ponto de ter algo verdadeiramente relevante para acrescentar. Este blog termina aqui.
(Título corrigido, após amável sugestão.)

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Civilização e religião (25)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (8)
Na segunda tese sobre a acção política, Ratzinger começa por alertar para a mitificação das decisões por maioria. Sem negar que se trata em muitos casos do método mais razoável para chegar a soluções comuns, a maioria nunca se pode tornar num princípio último. A razão moral está acima da maioria.

Resta saber quais os valores cuja maioria não pode colocar em causa. Antigamente existia o direito natural reconhecido por todos mas como no presente é apenas visto como uma doutrina católica particular, ficou aberto caminho para a razão partidária se impor. Resta ainda uma tríade de valores que ainda obtém um amplo reconhecimento: a paz, a justiça e a «integridade da criação», mas o partidarismo tornou a sua aplicação prática difusa e muitas vezes contraditória. O exemplo mais claro é o do valor da vida que se deixa ultrapassar facilmente pela liberdade e pelas necessidades da ciência.

Esta questão foi abordada num debate que Ratzinger teve com o Filósofo Flores d’ Arcais. O moderador, Gad Lerner, propôs os 10 mandamentos como uma base para os valores naturais. Estes mandamentos coincidem em grande parte com a sabedoria de outras grandes culturas, pelo que não se pode considerar propriedade privada de cristãos e hebreus.

«Agora vê-se claramente o que a fé pode fazer por uma boa política: ela não substitui a razão, mas pode contribuir para a evidência dos valores essenciais. No dia-a-dia, a vida na fé confere-lhes uma credibilidade que, depois, ilumina e cura a razão. No século passado – como em todos os séculos –, o testemunho dos mártires pôs limites aos excessos do poder e, deste modo, contribuiu de maneira decisiva para a purificação da razão.» (pp. 74)

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terça-feira, outubro 16, 2007

Civilização e religião (24)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (7)

Face ao estabelecido anteriormente Ratzinger estabelece duas teses sobre a actuação política nos dias de hoje. Na primeira começa por estabelecer que a política é o domínio da razão moral que tem por fim último o garante da paz e da justiça. O discernimento racional deve ser uma arma de vigilância constante contra o espírito partidário que pretende impor uma corrente como sendo a única verdadeira, mas que apenas é uma camuflagem para um esquema de poder. Esta vigilância não foi exercida de forma eficaz contra o nazismo e o comunismo.


Depois da queda das grandes ideologias ganharam relevo outros mitos políticos com uma aparência mais credível, trazendo atrás de si o terrível engodo dos valores autênticos, nomeadamente os do progresso, da ciência e da liberdade. Desde sempre o progresso parece confundir-se com o próprio desígnio da política e, habituados como estamos nas sociedades ocidentais ao progresso nos últimos 100 anos, nem esperamos outra coisa. Mas não se pode esperar que venha daqui a sair o homem novo, como se teoriza no marxismo e no liberalismo.

«Ser homem recomeça do princípio em cada ser humano. Por isso não pode existir a sociedade definitivamente nova, progredida e sã, em que esperavam não só as grandes ideologias, mas que também se torna cada vez mais – depois de a esperança no além ter sido demolida – o objectivo geral por todos esperado. Uma sociedade definitivamente pressuporia o fim da liberdade.» (pp. 70) O futuro não deve ser uma evasiva para o presente.

Em relação à ciência, naturalmente que se deve reconhecer os seus méritos mas também apontar as suas patologias, mais evidentes na criação de armas de destruição e massas e nas experiências com humanos. «Por consequência, deve ser claro que também a ciência deve submeter-se a critérios morais porque se perde sempre a sua verdadeira natureza, quando, em vez de se pôr ao serviço da dignidade do homem, se coloca à disposição do poder ou do comércio ou simplesmente do sucesso como único critério.» (pp. 71)

«Finalmente, o conceito de liberdade. Também ele na época moderna assumiu diversos traços míticos. Não raramente, a liberdade é concebida de maneira anárquica e simplesmente anti-institucional, tornando-se assim, um ídolo: a liberdade humana deve ser sempre só a do justo relacionamento mútuo, a liberdade na justiça; de outro modo, torna-se mentira e conduz à escravidão.» (pp. 71)

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terça-feira, outubro 09, 2007

Civilização e religião (23)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (6)

O Novo Testamento dá indicações sobre como deve ser o agir histórico. Em Romanos 13 pede-se submissão a todas as almas em relação às autoridades públicas, pois toda a autoridade provém de Deus. Claramente não há aqui qualquer apoio à causa revolucionária. A primeira carta de Pedro solicita a mesma submissão, fazendo ainda uma premonição acurada sobre o que será a mentalidade revolucionária muitos séculos mais tarde: «Actuai como homens livres, não como aqueles que fazem da liberdade um pretexto para a maldade…»


Em nada disto é preconizada uma divinização do Estado, que se torna claro na célebre resposta de Jesus aos fariseus e herodianos a propósito da questão dos impostos. César, como garante do direito, devia ser obedecido e receber o que lhe era devido. Mas César nunca deve tomar o papel de Deus, de onde se retira de imediato a necessidade de limitar o poder do Estado. Esta oposição ao Estado totalitário não se deve fazer através do uso da força mas aceitando o martírio sempre que em causa estiver a vontade de Deus.

Jesus, apesar de ser o Messias esperado, acabou por transformar o messianismo delineado no Antigo Testamento, deixando de lado a perspectiva escatológica-revolucionária. São quebradas as ilusões da política poder estabelecer o Reino de Deus. A esperança messiânica continua viva mas é colocada para além do tempo. «Ela evidencia os critérios morais da política e indica os limites do poder político, graças ao horizonte da esperança que deixa entrever para além da história e nela dá a coragem para se agir e sofrer rectamente.» (pp. 67) Mesmo o Apocalipse de João não deixa de ter esta fé na criação, no que diverge por completo da gnose.

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terça-feira, outubro 02, 2007

Civilização e religião (22)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (5)

Impõe-se hoje em dia ao político que prometa mudanças. Com a revolução em descrença, tomam lugar as reformas. Em todo o caso, o político tem de mudar e não conservar a sociedade, como se a vivência nesta estivesse no limite do suportável. No Império de Roma era o “Conservator” que desempenhava o papel mais importante da comunidade, que garantia a manutenção de um espaço onde reinavam a paz e o direito. Mesmo apreciando esta garantia, os cristãos pretendiam ver em Cristo algo mais que um “Conservator”, exactamente um “Salvator”. Está aqui implícita uma mudança, não no sentido político-revolucionário, mas que abria a perspectiva para outra dimensão humana.


A visão estática é por excelência a do Tao chinês, onde se define uma ordem divina a emular no ser humano e na vida política. Há que conservar, portanto, essa ordem. A visão do Dharma, em especial como é vista no budismo, conduz a uma profunda revolução interior mas não propõe novos modelos para a sociedade. A fé de Israel diferencia-se porque se orienta para o futuro, tem intrinsecamente uma concepção histórica. «É a visão dos oprimidos que olham para uma viragem da história e não se podem interessar pela conservação do existente.» O livro de Daniel apresenta visões onde essa viragem é uma intervenção directa de Deus, onde muitos viram o anúncio da chegada do Messias.

O marxismo veio retomar a corrente apocalíptica, tendo como suporte ideológico as classes dos explorados. Contudo, as reformas liberais levaram a que essas classes fossem melhorando o seu nível de vida e adquirissem direitos que tornaram a revolução supérflua. O marxismo acabou por ser a religião dos intelectuais, que se vêm opondo fortemente ao reformismo, aceitando apenas um mundo totalmente novo. A história passou a ser vista de forma evolucionista, através de saltos que se constituem como movimentos dialécticos, seguindo a formulação de Hegel. O Messias passou a ser a sociedade sem classes, que advém da revolução política. Apesar do determinismo implícito, as reformas são condenadas por destruírem o impulso revolucionário.

«Revolução e utopia – a nostalgia de um mundo perfeito – estão ligadas: são a forma concreta deste novo messianismo, político e secularizado. O ídolo do futuro devora o presente; o ídolo da revolução é o adversário do agir político racional em ordem a um melhoramento concreto do mundo. A visão teológica de Daniel, da apocalíptica em geral, é aplicada à realidade secular e, ao mesmo tempo, mistificada e rotundamente deformada. Com efeito, as duas ideias políticas basilares – revolução e utopia – são, na sua ligação à evolução e à dialéctica, um mito absolutamente anti-racional: a desmistificação é urgentemente necessária, para que a política possa desenvolver a sua obra de modo verdadeiramente racional.»

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terça-feira, setembro 25, 2007

Hiato

Afazeres que não podiam esperar impediram que dispusesse tempo suficiente para mais um post da série “Civilização e Religião”, que segue já longos meses. Estando agora a palavra de sua santidade em causa, certamente o próprio, versado nas questões da eternidade, compreenderia a minha situação e iria preferir um hiato de uma semana a um discorrer apressado e imponderado sobre as questões fundamentais à volta da nossa sobrevivência enquanto colectivo.

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terça-feira, setembro 18, 2007

Civilização e religião (21)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (4)

Sem se sentir preparado para uma discussão a fundo sobre a Constituição Europeia (em 2004), Ratzinger salienta alguns elementos que não deviam estar ausentes da mesma. Em primeiro lugar, a dignidade humana e os direitos humanos são valores prévios, não são criados pelo legislador. Ao remetê-los para o Criador deixa de ser possível manipulá-los, sendo essa a principal garantia de liberdade. Existe sempre a tentação de utilizar finalidades boas para justificar a utilização de novas possibilidades que a medicina moderna oferece, como a clonagem, a utilização de fetos, a manipulação genética, que Ratzinger considera levarem a um lento definhar da dignidade humana.


Um segundo ponto é a defesa do matrimónio e da família como fundamentos da identidade europeia. As crescentes facilidades em realizar o divórcio e a tentativa de conceber as uniões homossexuais como sendo da mesma categoria das relações tradicionais são formas claras, conscientes ou não, de ameaçar a família e o matrimónio.

Por último, a questão religiosa. Em todas as culturas é fundamental respeitar aquilo que para o outro é mais sagrado. No Ocidente existe o preceito de respeitar crenças alheias, por vezes através de condicionantes legais, mas quando se trata de Cristo é a liberdade de opinião que aparece como bem supremo. «Contudo, a liberdade de opinião encontra o seu limite no facto de não poder destruir a honra e a dignidade do outro; não é liberdade de mentir ou destruir os direitos humanos.»

«Em tudo isto é patente um ódio que o Ocidente sente em relação a si mesmo, que só se pode considerar como algo patológico; o Ocidente, cheio de compreensão, tenta de maneira louvável abrir-se a valores externos, mas já não gosta de si mesmo; da sua própria história já só vê o que é censurável e destruidor, já não está em condições de perceber o que é grande e puro. Se a Europa quiser sobreviver, necessitará de uma nova – certamente crítica e humilde – aceitação de si mesma.»

Remete isto directamente para o multiculturalismo, tão encorajado entre nós mas que acaba por ser uma «fuga das características próprias (…) Faz parte do multiculturalismo ir ao encontro do outro com respeito pelos seus elementos sagrados; mas só podemos fazer isto se o sagrado, Deus, não nos for estranho.» Se esta tarefa fosse levada a sério a troca seria nos dois sentidos, sendo reconhecido que os outros também têm o direito em conhecer o nosso Deus «que tem compaixão dos pobres e dos fracos, das viúvas e dos órfãos e dos estrangeiros (…)» A razão porque o resto do mundo vê o Ocidente como decadente, apesar de todos os nossos avanços a vários níveis, é porque a nível espiritual já nada temos a mostrar.

Relembrando a ideia de Toynbee, Ratzinger exorta os cristãos a se conceberem como a minoria criativa que contribui para readquirir o melhor que a herança europeia tem «e, deste modo, colocar-se ao serviço da humanidade inteira.»

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terça-feira, setembro 11, 2007

Civilização e religião (20)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (3)

Depois da Revolução Francesa surgiu nas nações latinas o modelo laico, onde «o Estado recusa o fundamento religioso e sabe que se baseia unicamente na razão e nas suas instituições.» A fraqueza da razão como suporte base torna este sistema vítima fácil das ditaduras. O que ainda torna os sistemas viáveis são os resquícios da anterior moral. Na Europa protestante é frequente existir uma religião de Estado que serve de fundamento moral. Apesar de serem sistemas mais sólidos que os anteriores, acontece um inevitável desgaste das igrejas de Estado e actualmente já não provém delas qualquer força moral.


O modelo dos Estados Unidos é distinto dos anteriores. A vida política segue um paradigma emulado do cristianismo protestante mas existe uma rígida separação entre Estado e Igreja. O futuro é também incerto quando a maior comunidade religiosa neste país já é católica, apesar de por enquanto seguir o princípio da separação religiosa.

Surgiu na Europa no século XIX o socialismo, que assumiu duas formas, a totalitária e a democrática. Muitos católicos sentiram-se próximos do socialismo democrático devido às afinidades programáticas com a doutrina social da Igreja. O modelo totalitário assente numa visão determinística da história era, pelo contrário, fortemente ateísta. Apesar disto, este socialismo apresenta um dogmatismo sem paralelo que subverte toda a moralidade europeia e de outras grandes tradições mundiais. Para este socialismo apenas o futuro é o juiz supremo e em nome dele e da sociedade perfeita que irá trazer «tudo pode ser permitido e até necessário.»

O naufrágio dos sistemas comunistas é normalmente atribuído à errada doutrina económica. Ratzinger discorda. «A verdadeira e autêntica catástrofe que eles deixaram atrás de si é de natureza económica; consiste no esgotamento das almas, na destruição da consciência moral.» Antigos comunistas não têm dificuldades em se tornar liberais na economia, afastando assim a problemática moral e religiosa. É não ver aqui o fulcro da questão que reside o grande perigo para a autodestruição da Europa.

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terça-feira, setembro 04, 2007

Civilização e religião (19)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (2)

Oswald Spengler criou uma tese, etiquetada de biológica, que estabelecia algo comouma lei natural para as grandes expressões culturais. Como qualquer ser vivo, uma cultura nasceria, iria crescer e depois morrer. Para Spengler o Ocidente já estaria perto do fim, que seria inevitável, sendo apenas possível fazer uma transmissão de dons para outra cultura emergente. Arnold Toynbee opôs-se fortemente a esta visão, assumindo que o verdadeiro progresso não era o material-técnico mas o espiritual. Admitindo também a existência de uma profunda crise no Ocidente, culpava-a pelo rebaixamento da religião ao culto da técnica, da nação e do militarismo.

A versão de Toynbee abre uma porta para a possibilidade da cura, que seria a reintrodução do factor religioso. «À visão biológica contrapõe-se aqui uma uma visão voluntarista que se baseia na força das minorias criativas e nas personalidades individuais de excepção.» Ratzinger salienta que sendo o futuro incerto fica em aberto qual dos dois autores terá acertado. Mas apesar disso impõe-se a tarefa de saber «o que é que tanto hoje como amanhã promete dar-nos [a nós europeus] a dignidade humana e uma existência que esteja conforme com ela.» Para encontrar uma resposta há que olhar para a situação actual, o que será visto no próximo post.

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terça-feira, agosto 28, 2007

Civilização e religião (18)

REFLEXÕES DO ACTUAL PAPA (1)

Algumas reflexões sobre a Europa encontram-se no livro “Europa – Os seus fundamentos hoje e Amanhã”, pelo então cardeal Joseph Ratzinger (editora Paulus).

Apesar da Europa se definir formalmente pela geografia, só a podemos compreender como um conceito cultural e histórico. Apenas desta forma as próprias evoluções no terreno são estendíveis. A primeira noção de um continente europeu identificou-se com o sacro Império Romano, cujas fronteiras nada têm a ver com aquilo que hoje chamamos Europa. O antigo império rodeava o Mediterrâneo mas com a sua dissolução e, mais tarde, com o avanço triunfal do Islão, este mar passa a ser uma fronteira entre Europa e África.


A fragmentação do Império Romano não terminou a vontade de expandir o império de Cristo. Por um lado ocorreu a expansão para norte, onde a Gália, a Germânia e a Britânia ganharam relevo. A oriente ainda permaneceu o antigo império, agora com a Capital em Bizâncio, que mudará de nome para Constantinopla. Nasceu aqui o cristianismo ortodoxo que depois se espalhou para o mundo eslavo e para a Rússia. Mas a antiga capital ainda teve de mudar de nome para Istambul, depois de cair em 1453 na mão dos turcos. Assim Moscovo acabou por se reclamar como a capital da ortodoxia. No ocidente ocorreu a fractura com o norte protestante e o sul católico, com idêntica transposição para as Américas.

Esta história baseia-se na ideia de construir um império com base na transcendência. Tendo convertido povos bárbaros, dado e recebido influências em relação a outras culturas antigas, a ideia base apenas foi contrariada a partir de dentro, com a Revolução Francesa. Criou-se a ideia de que o Estado deve apenas basear-se na razão e todas as questões de fé devem ser estritamente privadas. As limitações desta concepção deviam ser evidentes se pensarmos que os Estados que a iriam adoptar iram quase todos, mais tarde ou mais cedo, acabar na mão de ditadores.

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terça-feira, agosto 21, 2007

Civilização e religião (17)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (4)

Aquilo a que hoje se chama solidariedade social é essencialmente o subsídio de alguns desfavorecidos pelo Estado. Não há qualquer relação directa entre quem paga impostos e quem deles recebe uma pequena parte. Não há verdadeira dádiva nem qualquer gratidão, apenas uma relação fria determinada por burocratas. Robert Royal diz que devíamos seguir o exemplo dos primeiros cristãos e assumir a solidariedade com os mais necessitados directamente. Só deixando o Estado de fora, na medida do possível, é possível reconstruir uma sociedade mais humana onde os indivíduos são conscientes das suas responsabilidades.

A ligação à religião parece desnecessária mesmo para muitos que nela vêm uma importante inspiração para valores e instituições que hoje respeitamos. Contudo, há uma sensação generalizada de que os avanços da ciência e da tecnologia, da economia, a consagração das liberdades políticas e dos direitos humanos, tudo isto, pode dispensar daqui para a frente por completo a religião. E com a vantagem de não serem necessárias mais guerras religiosas. Contudo, desde a Paz de Vestefália assinada em 1648 que não existiram mais guerras desencadeadas oficialmente em nome da religião. A Revolução Francesa que tentou impor a Razão como a única coisa sagrada na realidade o que conseguiu foi causar no imediato uma enorme carnificina. As dezenas de milhões de mortos do marxismo, que dispensaram a religião, também devem ser eloquentes. E o ocidente no século XX, caminhando a largos passos para o ateísmo, teve a partir do seu seio duas guerras mundiais. Visto de fora, o ocidente à medida que foi abandonando a religião, apesar de fazer enormes progressos em várias áreas, caracterizou-se sobretudo pela tentativa de suicídio.
Apesar de todos os seus defeitos, os Estados Unidos são a democracia mais estável do mundo. Os pais fundadores tiveram a lucidez de separar a Igreja do Estado e de assegurar que ninguém possuiria alguma vez demasiado poder através do sistema de separação de poderes conhecido como “checks and balances”. Contudo, tudo isto só foi possível manter durante já alguns séculos porque existe uma moralidade que faz respeitar estes princípios. Foram esses mesmos país fundadores que nunca tiveram dúvidas em assegurar que o fundamento da moralidade e a religião, e abandonando esta todo o edifício irá ruir. Nas palavras de Václav Havel, a democracia só poderá sobreviver e expandir-se se redescobrir e renovar as suas origens transcendentais.

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terça-feira, agosto 14, 2007

Civilização e religião (16)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (3)

As culturas arcaicas possuiam uma concepção circular do tempo. O Génesis apresenta uma narrativa da criação que rompeu com isto, falando num mundo que teve um início e se dirige de forma linear para um fim. A partir daqui é possível imaginar a História com sentido próprio. Robert Royal acha que se a isto se somar a noção de que o homem foi criado à imagem de Deus, o resultado é a criatividade incessante típica do ocidente. Esta “efervescência” é criticada por aqueles que defendem certas noções de equilíbrio na natureza, criticando todo o progresso das sociedades ocidentais, a começar nas explorações marítimas.

Começou a perceber-se em Santo Agostinho a importância a dar ao indivíduo e à consciência. Surgiu o dilema entre as situações terrenas e a ideia da Deus, que foi pedindo o desenvolvimento da personalidade. Foi ainda no período medieval que surgiu a ideia de que o ser humano tinha direitos inerentes. O final da Idade Média, durante tanto tempo visto de forma simplista como uma era de trevas, viu ser consolidada a separação entre a Igreja e Estado, bem como a limitação de poderes. Não terá sido por acaso que isto tenha sido clarificado quando a noção de personalidade e concomitante responsabilidade tenham ganho maior relevo.
O movimento anticlerical tem avançado duas ideias contraditórias. Por um lado fala da religião como a grande força de bloqueio no desenvolvimento da ciência. Mas também condena a religião por ter posto em marcha todo o desenvolvimento no ocidente que conduziu a uma crise ambiental. Foram os franciscanos no final da Idade Média os responsáveis pelos principais desenvolvimentos científicos, simplesmente porque eram os que prestavam mais atenção ao mundo criado. O desígnio de destruir a natureza também nunca poderia ser uma meta traçada biblicamente quando o que de lá retiramos é um mundo bom, ordenado e inteligível. No entanto, todas estas raízes do que é o ocidente, mais do que esquecidas são fortemente negadas.

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Civilização e religião (16)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (3)

As culturas arcaicas possuiam uma concepção circular do tempo. O Génesis apresenta uma narrativa da criação que rompeu com isto, falando num mundo que teve um início e se dirige de forma linear para um fim. A partir daqui é possível imaginar a História com sentido próprio. Robert Royal acha que se a isto se somar a noção de que o homem foi criado à imagem de Deus, o resultado é a criatividade incessante típica do ocidente. Esta “efervescência” é criticada por aqueles que defendem certas noções de equilíbrio na natureza, criticando todo o progresso das sociedades ocidentais, a começar nas explorações marítimas.

Começou a perceber-se em Santo Agostinho a importância a dar ao indivíduo e à consciência. Surgiu o dilema entre as situações terrenas e a ideia da Deus, que foi pedindo o desenvolvimento da personalidade. Foi ainda no período medieval que surgiu a ideia de que o ser humano tinha direitos inerentes. O final da Idade Média, durante tanto tempo visto de forma simplista como uma era de trevas, viu ser consolidada a separação entre a Igreja e Estado, bem como a limitação de poderes. Não terá sido por acaso que isto tenha sido clarificado quando a noção de personalidade e concomitante responsabilidade tenham ganho maior relevo.
O movimento anticlerical tem avançado duas ideias contraditórias. Por um lado fala da religião como a grande força de bloqueio no desenvolvimento da ciência. Mas também condena a religião por ter posto em marcha todo o desenvolvimento no ocidente que conduziu a uma crise ambiental. Foram os franciscanos no final da Idade Média os responsáveis pelos principais desenvolvimentos científicos, simplesmente porque eram os que prestavam mais atenção ao mundo criado. O desígnio de destruir a natureza também nunca poderia ser uma meta traçada biblicamente quando o que de lá retiramos é um mundo bom, ordenado e inteligível. No entanto, todas estas raízes do que é o ocidente, mais do que esquecidas são fortemente negadas.

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terça-feira, agosto 07, 2007

Civilização e religião (15)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (2)

É bem conhecida a brutalidade dos eventos que ocorriam no Coliseu romano, sob admiração entusiasta da turba. Contudo é fácil esquecer que estes hábitos não eram excepcionais mas aconteciam regularmente na maior parte dos locais não tocados por certas crenças religiosas. O contraste com o comportamento dos cristãos virtuosos, humildes e mostrando amor ao próximo, atraiu muitos entre os povos pagãos. Esta compaixão cristã era particularmente impressionante quando actuavam junto dos doentes, que necessitavam amiúde de cuidados permanentes durante muito tempo e o risco para o caridoso era notoriamente real. Esta caridade entre os cristãos serviu também para criar populações mais resistentes e indirectamente foi uma forma de promover a demografia entre os seguidores da religião de Cristo.

Hoje em dia tornou-se moda a ideia que o cristianismo prejudicou as mulheres, mas a realidade diz-nos outras coisas. Nos círculos pagãos o pai de família tinha poderes absolutos e podia ordenar que a mulher abortasse, o que era frequentemente fatal. As jovens infantas eram também alvo de infanticídio por serem menos desejadas que os rapazes. E isto não é passado, se pensarmos na desproporção entre homens e mulheres jovens na China e na Índia. Por muito que se critique a ética cristã a este respeito, sem dúvida que colocou o estatuto da mulheres muito mais próximo do que tinha o homem.

O início do Génesis apresentou duas ideias que ajudaram a modular algumas marcas da ocidentalidade. Na passagem em que Deus criou o mundo, Ele depois observa que se trata de algo bom. Nas escrituras hebraicas a realidade do mundo advém de ser sido uma criação de Deus. Isto opõe-se a concepções dualísticas gnósticas e a outras que não vêm o mundo mais que uma ilusão.
Outra passagem bem conhecida do Génesis diz que o homem foi criado à imagem e semelhança do Criador e iria sobre todas a espécies reinar. As visões simplistas hodiernas não avistam nisto mais que um convite ao egocentrismo e um apelo à destruição do ecossistema. Contudo, uma concepção que coloca o homem no topo da hierarquia da criação, sabendo que há um Deus omnipotente que tudo vigia e lhe é infinitamente superior, dá ao homem responsabilidades e não direitos ilimitados. E num mundo onde a vida da maior parte das pessoas podia terminar a qualquer momento, por doenças que dizimavam famílias num ápice ou por ordem sumária de um qualquer governante ou senhor local, cada homem ouvir que tem algo à semelhança de Deus não era uma forma de o transformar numa monstro egocêntrico sem limites a colocar no querer. Era dar-lhe o mínimo de dignidade. Apenas com esta semente foi possível, muito tempo depois, conceitos como «liberdade» serem erigidos como autênticas instituições.

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terça-feira, julho 31, 2007

Civilização e religião (14)

A IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DO OCIDENTE (1)

Em 17 de Outubro de 2001, Robert Royal apresentou na Universidade de Delaware uma palestra intitulada “The Importance of Religion to the Development of the West”. Na altura os acontecimentos fatídicos do 11 de Setembro estavam bem vivos na memória dos americanos, mas o autor manteve-se fiel ao tema que já tinha há muito acordado. Numa altura em que a religião islâmica era um assunto em voga, por razões óbvias, tornava-se também importante olhar para a religião no ocidente.

Royal chama a atenção para um pormenor curioso. A imagem que existe no estrangeiro sobre os americanos é aquela transmitida essencialmente pela sua cultura popular, sem dúvida a que mais sucesso faz a nível mundial. A partir dessa imagem poucas são as pessoas que diriam que os americanos são um dos povos mais religiosos do mundo. Os próprios intelectuais e políticos americanos desvalorizam isto, bem como quase tudo o que envolva a fé. Por esta razão existe uma imensa lacuna nos meios académicos sobre o estudo do poder das ideias religiosas no desenvolvimento das sociedades, sendo tudo agora pensado em termos económicos, políticos e tecnológicos.

Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o império já estava largamente cristianizado, apesar da perseguição que sofriam os cristãos. O historiador Tácito dizia que o cristianismo não passava de uma superstição depravada com o objectivo de espalhar o ódio entre a raça humana. Mas se tivesse sido assim, como teria sido possível terem ganho o apoio das pessoas comuns e, mais tarde, terem convertido os pagãos só pela palavra? Pensemos na ideia bíblica do amor ao próximo. A sua simplicidade adapta-se a diversos meios culturais. Mas só aparentemente é uma ideia óbvia e que surgirá de forma espontânea. À medida que as sociedades crescem e vão precisando de mais recursos, a solução que se apresenta mais óbvia é o confronto e não a comunhão. E em redor do planeta várias crenças foram neste sentido.

Uma das afrontas que os cristãos fizeram ao império foi prestar cuidados aos desfavorecidos, às viúvas, aos órfãos, aos doentes e aos moribundos, enterrando não só os seus mortos mas também os que não professavam da mesma fé. O imperador Juliano, apóstata, via aqui motivações cínicas. Pensou que podia restabelecer o velho panteão pedindo aos seus que colocassem em prática uma benevolência semelhante à dos cristãos. Descobriu que não era nada fácil instigar a caridade com base em propósitos abstractos. Esta compaixão só era possível porque existia uma crença prévia que Deus e os santos tinham pedido aos fieis para agir assim. Talvez isto ajude a explicar a razão de alguns voluntários ateus e agnósticos, na actualidade, preferirem juntar-se a grupos religiosos em acções de caridade por os considerarem mais sérios.


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terça-feira, julho 24, 2007

Civilização e religião (13)

OS VALORES OCIDENTAIS REVELADOS PELA ESCOLÁSTICA (2)

Outro conceito que foi desenvolvido por Aquino, segundo Michael Novak, foi o de consciência, neste contexto subentendido como consciência moral. O conceito não remonta aos antigos gregos ou romanos e apenas está implícito na Bíblia quando surgem conflitos interiores. Nos tempos modernos a vida moral é entendida, segundo a formulação de Kant, como o cumprir de uma série de deveres. Mas para o cristianismo antigo a vida moral era um caminho a percorrer, antes delineado por santos e homens notáveis, sendo o arquétipo de modelo de vida o próprio Cristo. Aquino preocupou-se em saber como se devia cumprir esta vida moral em termos práticos, tendo em conta que cada pessoa vive circunstâncias únicas e irrepetíveis. É neste ponto que o conceito de consciência se torna útil, definindo-se um conhecimento prático, a impor pela força do hábito, que conduz ao discernimento da atitude correcta a tomar em cada momento e quando existe afastamento desse discernir aparece o remorso. A consciência extinguir-se-á devido a falhas frequentes ou ao deliberado afastamento.

O conceito de pessoa foi-se tornando necessário à medida que a reflexão sustentada da Bíblia avançava. Havia que encontrar um conceito que unisse a natureza dual de Jesus Cristo, humana e divina – daqui ocorreu a génese do conceito de pessoa. A pessoa seria uma substância com capacidade de interiorização e de escolha livre e responsável. Enquanto a noção de indivíduo pode-se aplicar a animais, por pessoa entende-se algo que vai mais além, a quem se pode pedir responsabilidades e reconhecer uma maior dignidade. Com este conceito desenvolvido os missionários tinham argumentos para pedir um tratamento mais humano para povos indígenas no novo mundo e no oriente, ao que os aventureiros europeus não mostraram uma grande abertura. Os autores federalistas americanos perceberam que era necessário interiorizar estes princípios nos hábitos e incorporá-los nas instituições com o sistema de checks and balances.



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terça-feira, julho 17, 2007

Civilização e religião (12)

OS VALORES OCIDENTAIS REVELADOS PELA ESCOLÁSTICA (1)

Michael Novak, no seu artigo “The Judeo-Christian Foundation of Human Dignity, Personal Liberty, and the Concept of the Person”, defende que os valores pessoa, consciência, verdade, liberdade e dignidade, tais como os conhecemos hoje, derivam do período entre 1100 e 1350 sob influência dos teólogos medievais, o mais famosos dos quais São Tomás de Aquino. Apesar de serem conceitos já utilizadas em eras pré-cristãs, a acepção que hoje lhes damos e levamos à prática foi-nos revelada por estes escolásticos.

Para os antigos gregos a dignidade não se aplicava a todos os homens. Platão e Aristóteles acreditavam mesmo que apenas alguns indivíduos tinham uma natureza que os devia afastar da escravidão e, por isso, merecedora de dignidade. A formulação moderna, que conhecemos por Kant, de que nenhum homem deve ser visto como um meio para algo mas como um fim em si mesmo, mais não é que uma repetição dos preceitos bíblicos, primeiro delineados pelo judaísmo e finalmente consolidados no cristianismo através da formulação de que todos somos filhos de Deus. A concepção da universalidade da dignidade humana é um produto acabado do cristianismo, que os tempos anticlericais hodiernos fazem por esquecer as origens, atribuindo a paternidade com frequência e de forma errada ao Iluminismo.

Para judeus e cristãos a liberdade é uma dádiva de Deus. Contudo, no século XIII, aquilo a que se podia chamar de mundo académico, em especial o sedeado na universidade de Paris, tinha uma visão diferente sobre esta questão. Predominavam as interpretações de Aristóteles mediadas por filósofos árabes como Avicena e Averróis. Para estes, o entendimento nunca ocorria verdadeiramente no ser humano mas era-lhe fornecido por Deus, o que parecia justificar os eventos onde somos surpreendidos pelas nossas próprias cogitações. Tomás de Aquino percebeu que esta concepção colocava a liberdade em risco. Munido de novas traduções em latim dos originais gregos, bateu-se durante 15 anos contra a corrente dominante “averroista”, confirmando-o como o primeiro e mais decisivo obreiro da causa da liberdade no ocidente.

Para os filósofos cristãos, a questão da liberdade vai ligar-se à da verdade. Para perceber isto é preciso ter a noção de que a filosofia cristã coloca a liberdade interior acima e previamente às liberdades política e económica. Os actos de conhecer, julgar e opinar, como actos interiores que são, devem ser acompanhados de uma postura responsável sob pena de trair a confiança que Deus depositou em nós quando nos deu a liberdade de os possuirmos. Essa responsabilidade prende-se com a necessária fundamentação da argumentação e um compromisso de apego incondicional à verdade. Quem assim actua coloca-se sob o julgamento da própria realidade, efectivado pelo escrutínio da comunidade composta por aqueles que possuem o mesmo espírito de procura da verdade.

Aquino identificava dois actos de liberdade que era sempre possível levar à consciência, mesmo nas condições mais adversas: a liberdade de especificação e a liberdade de exercício. A especificação prende-se apenas com a focagem numa determinada parte da realidade enquanto o exercício trata-se do julgamento quando existem evidências suficientes para o veredicto, sem decisões preconcebidas mas também sem fugir a ess responsabilidade. A passagem da liberdade interior para aquela que se imprimiu nos sistemas políticos modernos e nas instituições culturais não pode ser feita no imediato, sendo necessárias muitas gerações. A tentativa de mudar bruscamente, através da fé inabalável na razão, conduziu às piores catástrofes da história da humanidade, ocorridas no século XX. Trata-se do conceito fatal, descrito por Hayek, que parte da falácia de que a razão é a fonte de tudo quando na realidade a razão acaba por ser também uma consequência do processo evolucionário.


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terça-feira, julho 10, 2007

Civilização e religião (11)

A FORMAÇÃO DO OCIDENTE (3)

Dawson salientou que não devia ser o plano da Igreja o restabelecer da cristandade, muito menos fazê-lo a partir de um regime teocrático. As relações que importa considerar não são entre religião e Estado mas entre religião e cultura.
O interesse material é tido como a força unificadora da sociedade, enquanto a religião e a espiritualidade são vistas como fontes de divisão e contenda. Por isso a mentalidade dominante diz que urge afastar a religião de tudo o que seja o fulcro do desenvolvimento social e face a isso o Estado passa a ser chamado a intervir em tudo. Dawson acreditava que mais tarde ou mais cedo esta tendência ir-se-ia inverter e o papel fulcral da espiritualidade iria ser reconhecido, não numa mescla que corrompe a religião com a política e a política com a religião, mas da forma que o ocidente conhece, onde o cristianismo conseguiu ser o eixo do progresso transcendendo os aspectos políticos e económicos.

A educação é crucial neste processo. A constante especialização e o utilitarismo seriam as principais causas da desintegração cultural, no ponto de vista de Dawson. A fé que todos os problemas serão resolvidos no futuro por inovações técnicas cria a ideia de que não é necessário assumir responsabilidades no presente. A consequência é a alienação crescente das pessoas em relação à natureza, à sociedade e mesmo em relação a elas mesmas.
Mas como voltar a imprimir uma marca evangelizadora no ensino se Dawson não defendia a utilização dos meios coercivos do Estado para isso? A esperança advinha da contemplação da História. As grandes renovações culturais e mesmo civilizacionais não foram planeadas. Deveram-se a homens religiosos que se preocupavam sobretudo em proteger o seu modo de vida e a sua espiritualidade num contexto decadente. Foram eles que lançaram as fundações através da sua fé e converteram, pelo exemplo, os povos que se tinham paganizado à sua volta.


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terça-feira, julho 03, 2007

Civilização e religião (10)

Antes de prosseguir esta série, que se estenderá pelo menos durante todo o mês de Julho, farei uma consideração acessória. É um exercício curioso tentar explicar a alguém a importância da religião na construção da sociedade. O mais comum é depararmos com uma reacção de espanto e horror. Não é raro mostrarem a sua desilusão por nos termos, supostamente, convertido à religião. O grau máximo de alienação está personificado, nos dias que correm, na religiosidade. É como se o convertido tivesse morrido, já não se pode contar com ele para nada. A religião tornou-se a nova peste, algo tão contagioso que se deve guardar o máximo de distância possível.

Contudo, se tentarmos explicar o âmbito das reflexões sobre religião, que neste caso não é pessoal mas social e cultural, não raro a reacção é de confusão, como se estivéssemos a expor um raciocínio paradoxal. A maior parte das pessoas deixou de conseguir conceber a religião como algo que possa ter um âmbito mais alargado que o pessoal e a comunidade religiosa. Esta “guetização” do religioso estende-se ao passado, como se constatou no preâmbulo da constituição europeia abortada, onde as referências à herança cristã tiveram de ser retiradas em nome do politicamente correcto. Naturalmente sobra ainda espaço para lançar umas farpas pelos pecados da religião, mas é uma avaliação acrítica, meramente achincalhante e que procura por todos os meios afastar-se da objectividade.

Entenda-se que esta proibição do religioso só é válida para o cristianismo e judaísmo. Budistas, hinduístas ou muçulmanos podem discorrer sobre todo o tipo de assuntos que serão bem vindos. Muitos condenaram o posicionamento da Igreja sobre a questão do aborto, mesmo tendo sido um envolvimento minimalista. E veja-se o horror que é recebida cada declaração do Papa que não seja inócua e previsível. Os próprios crentes colaboram nisto ao envergonharem-se de assumir a sua religiosidade. Sendo assim, torna-se imperioso que alguém de fora tome em mãos a tarefa da defesa da Religião.

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quarta-feira, junho 27, 2007

Civilização e religião (9)

A FORMAÇÃO DO OCIDENTE (2)

A maior parte dos académicos desvaloriza o papel da religião na formação das sociedades ou atribui-lhes um papel genérico, num sentido ou noutro. Dawson, pelo contrário, considera que a influência que o cristianismo imprimiu na civilização ocidental não teve paralelo. A flexibilidade, o dinamismo, o desejo de renovação e de encontrar novas formas de organização social que se encontram no ocidente são uma marca derivada do cristianismo. O primeiro sinal foi dado pela destrinça entre o que é de César e o que é de Deus, mas a formulação política ficou mais explícita nas Duas Cidades de Santo Agostinho. A ideia é colocar a cristandade simultaneamente neste e no outro mundo. O interesse genuíno por este mundo, com um desejo contínuo de o melhorar à luz de uma amor superior – É desta forma que se consuma a ligação a Deus e à sagrada Trindade.

Outras grandes civilizações inspiradas por religiões diferentes, como o confucionismo, o hinduísmo ou o islamismo, tenderam a idealizar um modelo de perfeição imutável, que desvalorizava a passagem do tempo. Não é de estranhar que encontremos nestas civilizações formatações sociais que pouco se alteraram durante séculos. A história do ocidente é contada, em contraste, por uma série de renascimentos. Mas é precisamente à Renascença que associamos a emancipação da religião, não percebendo que foi um movimento criado por homens moldados por um milénio de cristianismo. O à vontade com que os grandes vultos do renascimento se moviam no mundo temporal faz esquecer a sua enorme espiritualidade.
A expansão europeia para outros continentes é explicada de forma simplista como mera agressão imperialista e exploração económica. Dawson aponta a falta de novidade nestes factores. Ao longo da história existiram inúmeras investidas imperialistas onde não faltou agressão e exploração, mas não tiveram de todo o mesmo resultado da expansão europeia. Este autor aponta outro factor, para além destes negativos, que se tornou determinante: o carácter missionário ocidental. Este missionarismo já tinha ocorrido, primeiro em direcção às ilhas britânicas e, destas, em direcção aos povos bárbaros dos terrenos que hoje são a Alemanha e a Holanda. Vivemos numa época em que a mentalidade dominante no ocidente prefere sempre olhar para o lado negro do seu passado, esquecendo as realizações positivas. Preferimos ver os nossos antepassados como esclavagistas e não como os que puseram fim à escravidão, que foi comum em tantas sociedades que ainda hoje admiramos.
MC

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terça-feira, junho 19, 2007

Civilização e religião (8)

A FORMAÇÃO DO OCIDENTE (1)

Talvez ninguém tenha se empenhado tanto como Christopher Dawson em mostrar a importância da religião na formação do ocidente. O historiador e sociólogo não hesitou em considerar a religião como a chave para a compreensão da História. O forte anti-clericalismo dos meios académicos trouxe-lhe o inevitável esquecimento, passando décadas sem as suas obras serem editadas e muitos licenciados nestas áreas nunca tomaram conhecimento dos seus livros. Todo o esforço é reduzido para recordar algumas das ideias de uma figura que se empenhou na luta contra o espírito positivista e niilista na nossa era. Os próximos posts farão uma mescla do conteúdo do site http://geocities.com/dawsonchd/.
A maior parte dos académicos, intoxicados de marxismo e psicanálise, tem uma visão simplista da religião, como mero produto de forças materiais e psíquicas. Dawson, pelo contrário, insiste na necessidade de ver a religião como essencial na formação e transformações de uma cultura. Os primeiros trabalhos criativos de qualquer cultura tinham inspiração ou fins religiosos e não existem construções mais duradouras que as confirmadas ao transcendente. A influência religiosa é bem patente na instituição monárquica, mas mesmo o sistema legal tem caracteres que denunciam a sua inspiração religiosa.
Uma das características da cultura ocidental é o seu crescimento orgânico, um espalhamento para lugares afastados das origens, numa série de renascimentos motivados pela livre comunicação. Ainda hoje este processo acontece na transferência de tecnologia e na apologia que o ocidente faz da democracia. É uma característica que remonta claramente ao método de evangelização cristão e muitos dos renascimentos culturais foram sentidos como também sendo espirituais.
A tendência actual vai claramente no sentido de secularizar a sociedade e mesmo as instituições religiosas. A religião passou a ser vista como mera superstição, a ser removida de qualquer discussão pública. As reacções a alguns discursos do papa Bento XVI mostram que a religião, no ocidente, só pode manifestar-se publicamente utilizando uma retórica inócua, pluralista e inclusiva. O politicamente correcto tolera apenas a religião escondida, no máximo uma inspiração para as boas maneiras. Os próprios líderes religiosos contribuíram para a desvalorização da religião, quando se contentaram em ver o cristianismo como uma reserva moral que domava o capitalismo, desistindo de apresentar a sua religião associada aos fins últimos e à salvação da alma.


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quarta-feira, junho 13, 2007

Civilização e religião (7)

A GÉNESE DA CIVILIZAÇÃO

Russel Kirk, no seu ensaio “Civilization Without Religion”, indica o contributo que a religião terá dado à civilização. Seguindo a linha de historiadores como Christopher Dawson, Eric Voegelin e Arnold Toynbee, Kirk dá uma resposta que surpreende pela sua simplicidade. A cultura emergiu do culto, entendido como a reunião de pessoas que têm em comum o desejo e a prática da adoração de um poder transcendental. Forma-se assim uma comunidade que pode crescer e cooperar das mais diversas formas, como na defesa comum, na agricultura e, aos poucos, criando instituições mais complexas e abstractas, como o aparato legislativo. Uma grande civilização nos nossos dias é um intricado de culturas que tiveram origem em pequenos nódulos de adoração, há milhares de anos atrás, na Palestina, Grécia e Itália, por exemplo.

O culto religioso perdeu a sua força, os templos modernos têm uma arquitectura horrível, longe de ser inspirada pela imaginação religiosa, parece querer antes transmitir a ideia de que o homem é realmente desprovido de alma. Para alguns, este declínio religioso é um triunfo civilizacional, porque podem mergulhar de cabeça na ilusão da liberdade sem responsabilidade, pensando que é uma situação que se pode eternizar sem consequências. Mas a civilização que abandona a inspiração religiosa está condenada a fragmentar-se em átomos. Este perigo é reconhecido até por ateus, que propõem um substituto laico. O ideal nacionalista é constantemente sugerido, sendo bem conhecidas as experiências que o levaram ao extremo, com as piores consequências. Para Kirk não haverão ideais que tenham a mesma força e consequências benéficas que aqueles que a religião já nos ofereceu. Olhando para o histerismo doentio da ideologia ideológica, que se propõe a ser a grande unificadora global, não deixo de pensar que terá muita razão.


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quarta-feira, junho 06, 2007

Civilização e religião (6)

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA – 4ª PARTE

O que se ensinava nas universidades pode ser chamado de alta cultura, que é uma emanação da cultura comum que começamos a adquirir desde a nascença. É a alta cultura que perpetua a memória da partilha colectiva, numa exaltação que torna tudo natural e sereno. A cultura comum, que em grande parte traduz os costumes da sociedade, deriva da religião e, sem esta, tudo se fragmenta. Várias instituições sobrevivem ao colapso das religiões, englobadas em movimentos que tentam fomentar outro tipo de partilhas comuns, como a nacionalidade.

É uma ideia que se tem tornado comum que todas as realizações positivas da civilização ocidental derivam de um afastamento da religião. Acontece que foram Jesus e São Paulo os primeiros a pedir a separação entre a religião e o Estado, e os valores de solidariedade e liberdade individual advém dos fundamentos do cristianismo. A tentativa de exterminar a alta cultura dos currículos universitários acaba por levar o homem erudito a separar-se da religião e, ao fazê-lo, cria um afastamento deste em relação ao homem comum.

As próprias alternativas aos currículos tradicionais acabam por ter um carácter teológico. As suas premissas são tidas como inquestionáveis e quem o tenta fazer recebe um de dois tratamentos. Ou é ignorado ou fica com o ónus da prova. Quem assume a defesa das causas progressistas foge do debate de ideias ao inverter o ónus da prova, afirmando que são os cépticos que têm de provar que eles estão errados e não eles que têm de mostrar que estão certos. Em tempos de menor alienação este crime contra a inteligência devia causar um calafrio, uma vez que é um método que serve para validar qualquer tipo de ideia, uma vez que elas deixam de valer pelos seus méritos mas sim pela inépcia dos que se lhes opõe. Na realidade a situação é bem mais grave já que quem domina as universidades são as mentalidades progressistas que não têm qualquer pudor em censurar e vetar as personalidades que não se vergam à sua ideologia. p>

Roger Scruton acaba a sua palestra com uma nota de esperança, confiando que nem todos os estudantes acreditam nesta farsa moderna e basta que um professor consiga lhes abrir os olhos para a verdadeira descoberta do “livro” para que isso provoque um desejo inabalável de maior iluminação, o que acabará por levar à constatação óbvia da grandiosidade da cultura ocidental.


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terça-feira, maio 29, 2007

Civilização e religião (5)

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA – 3ª PARTE

Uma das ideias mais famosas de Nietzsche diz que não há verdades, apenas interpretações. É espantoso que tão poucos tenham percebido a ironia, já que a afirmação só pode ser verdade se o não for. Tudo passou a ser uma questão de ponto de vista e exprimir essa ideia pueril, das mais diversas formas, é tido como algo altamente inovador. Há versões para todos os gostos, desde as rebuscadas teorias de Foucault, que afirmam que o que tomamos por verdades são um «epistema» do discurso dominante, até às efabulações feministas, que asseguram-nos que a sexualidade e o género são meras construções sociais, sendo o extremo a denúncia da famosa equação de Einstein (E=mc2) por Luce Irigaray como sendo parte de uma física machista.

Os currículos que se focavam no estudo da cultura ocidental eram imparciais e apolíticos, na medida em que quem os frequentava não iria ter a sua ideologia determinada. Já os novos currículos, com a ênfase na perspectiva, são assumidamente políticos, começando logo por ter por principal desígnio a denúncia da cultura ocidental por supostamente ser sexista, racista, homofóbica, etc. Apesar de assumirem uma veia crítica, os proponentes das teorias “da perspectiva” não admitem qualquer criticismo em relação a si mesmos, não hesitando em “purgar” os não-alinhados.

O máximo que podem admitir sobre a imparcialidade dos antigos currículos é que se trata de uma imparcialidade ocidental, que bloqueia outros pontos de vistas. Mas podemos também perguntar até que ponto estes modernistas libertaram-se eles mesmos do lastro ocidental. Em que outra parte do mundo, sem ser no mundo ocidental, vemos activistas do feminismo, direitos dos homossexuais, da libertação sexual, etc. a poder expressar-se livremente e a ter real poder de influência na sociedade?

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terça-feira, maio 22, 2007

Civilização e religião (4)

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA – 2ª PARTE


Tenha-se em atenção o seguinte excerto, de autoria de Gayatri Chakravarty Spivak:

The rememoration of the “present” as space is the possibility of the utopian imperative of no-(particular)-place, the metropolitan Project that can supplement the post-colonial attempt at the impossible cathexis of place-bound history as the lost time of the spectator.

Aqueles que possuem um domínio modesto da língua inglesa não devem ficar frustrados por terem tido dificuldades em perceber o que acima se transcreveu. A frase é objectivamente incompreensível. Depois de Alan Sokal e Jean Bricmont terem escrito “Intellectual Impostures” deixou de haver receio de rir deste tipo de elucubrações sem sentido. Estes autores, de simpatias socialistas, acreditam que a melhor forma de transmitir as suas convicções esquerdistas acontece através da via racional e objectiva. Mas quando se adopta este caminho e se encontra um adversário com um mínimo de talento, as ideias socialistas acabam por ser desmontadas com relativa facilidade.

A utilização da linguagem obscura e pretensiosa (“Gobbledygook”) é uma forma muito mais eficaz de transmitir e proteger as crenças de esquerda. Apesar de parecer um contra-senso, verifica-se no mundo intelectual uma espécie de Lei de Gresham (a má moeda expulsa a boa moeda). A sobrevivência e propagação deste tipo de teorias que a modernidade nos trouxe depende de uma concepção que torna o seu escrutínio impossível ou muito difícil de realizar. A refutação de uma teoria torna-se indesejável quando ela está impregnada de uma postura política largamente aceite. Contudo, a própria refutação torna-se impossível quando essa teoria cria à sua volta uma muralha inexpugnável de “nonsense”.

Vejamos com mais atenção o exemplo acima citado. É preciso assumir um contexto em que tantos os autores das modernas teorias literárias como os seus potenciais leitores acreditam que a cultura ocidental é pesado fardo cuja remoção é essencial fazer. A teoria exprime isso através de pistas, no exemplo em questão as referências ao imperativo utópico, a um projecto metropolitano, a uma tentativa pós-colonial. Por outro lado, a linguagem utiliza uma série de estratagemas, como a invenção de palavras (“rememoration”), importação indevida de tecnicismos (“cathexis”), citações inexplicáveis (“present”), parênteses inesperados (“no-(particular)-one”) e referências a abstracções como espaço e tempo que neutralizam o processo normal de raciocínio. Tratam-se de teorias teológicas e não científicas porque não estabelecem nenhuma ideia concreta, antes, assumem-na e protegem-na contra o escrutínio da razão.


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terça-feira, maio 15, 2007

Civilização e religião (3)

A IMPORTÂNCIA DA CULTURA – 1ª PARTE

Os próximos posts resumem a palestra “Culture Matters”, de Roger Scruton.

Havia esperança na reconstrução da Europa depois do término na Segunda Guerra Mundial porque as nações, tanto as vencedoras como as derrotadas, tinham sido moldadas por dois mil anos de cristianismo e direito romano. Comunismo, fascismo e nazismo eram vistos como traições a essa herança cultural e o essencial era voltar a recuperá-la. Esta mentalidade estava presente nas pessoas que estabeleciam os currículos universitários das áreas humanas, apontando-os para a cultura ocidental.

Trata-se de uma herança multifacetada que joga uma dialéctica entre a fé cristã e o cepticismo iluminista e a apreensão de ambos permite elaborar uma síntese que os transcende. Este consenso em redor da importância da cultura ocidental não criou um exército de intelectuais a falar a uma só vez, pelo contrário, cada um acabaria por seguir uma tendência específica, alguns optando por estudar as criações inspiradas na fé, outros dando à ciência uma importância central. Em termos políticos esta formação base não impediu o surgimento de socialistas, liberais e conservadores, porque a política ainda era vista como matéria de opinião e a cultura uma forma de conhecimento superior, indispensável para conhecer o sentido da vida se abordada a partir de uma postura crítica que, ao mesmo tempo, impediria a degradação dessa mesma cultura. O foco na cultura ocidental acabava por abrir caminhos para universalismo, lembrando apenas nomes como Mahler, Vang Gogh ou Pound que faziam a ligação ao extremo oriente.

Esta forma de educação, aberta tanto à crítica como ao enlevo, era sentida, após a alienação da adolescência, como a entrada numa catedral, um local de julgamento, discriminação e alusão, onde tudo passa a estar carregado de sentido. Apesar da conotação religiosa, tratava-se de uma abordagem onde os não crentes sentiam-se igualmente tocados sem a sensação de submissão a um programa ideológico.

O panorama actual na maior parte das universidades alterou-se radicalmente. A cultura ocidental ainda é um tema importante mas passou a ser vista como agressiva, culpável e estranha em relação ao mundo actual. O professor acha que a sua principal missão e instigar o aluno contra a sua própria cultura e propor um dos inúmeros métodos alternativos, cuja prodigiosa variedade parece apenas confirmar que a cultura «clássica» agrilhoava toda esta saudável efervescência. É o neo-marxismo (Frederic Jameson), o estruturalismo (Roland Barthes), o pós-estruturalismo (Michel Foucault), o desconstrucionismo (Jacques Derrida), o pós-modernismo (Jean-François Lyotand), o neo-historicismo (Stephen Greenblatt), o pós-colonialismo (Eduard Said), o neo-pragmatismo (Richard Rorty), a que se juntam as teorias “queer” e feministas.

Uma tão grande profusão de correntes em poucas décadas não se deve certamente a um surto de genialidade mas a um excesso de auto-convencimento. Se ao invés da busca sobre o que diferencia estas correntes procurarmos os pontos que têm em comum, a variedade esvai-se num ápice, logo à cabeça com o desígnio comum de combater a cultura e a civilização ocidentais. Outras características comuns revelam-se na linguagem obscura e pretensiosa e num programa político subjacente.


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terça-feira, maio 08, 2007

Religião e civilização (2)

CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Antes de prosseguirmos, convém fazer alguns comentários sobre civilização e cultura, para que se estabeleça o contexto implícito nas reflexões que se seguirão. A forma mais simples de relacionar cultura com civilização é fazê-las coincidir. O grau de civilização de um país estaria relacionado com o afastamento que tinha em relação à natureza. Esta mentalidade, adaptada aos tempos do orgulho colonialista, veio a ser contrariada pelo mito do bom selvagem. No entanto, o paradigma não se alterou, apenas as conclusões mudaram de sentido e, em grande parte, até hoje permanecem.

Por agora importa delimitar a humanidade em termos de civilizações e relacioná-las com as culturas. Actualmente tem algum sentido falar numa única civilização humana já que quase não existe sociedade que se possa considerar isolada ou, pelos menos, impermeável às influências exteriores. Mesmo regimes fechados, como Cuba ou Coreia do Norte, não se livram de algumas pressões exteriores. A própria existência de um «exterior» e do seu conhecimento provocam alterações internas, que se tornam mais visíveis com os dissidentes. Esta «civilização global» devia, sobretudo, alertar para a perigosidade desta possibilidade já que serão sempre mais as pressões para que esta globalização seja política em vez de unicamente económica, ou seja, ir no sentido de limitar as liberdades e não de as promover.

Mas para uma análise mais rica de outros fenómenos convém esquecer, excepto menção em contrário, a «civilização global». Originalmente uma civilização compreendia o conjunto de sociedades que eram governadas pela mesma lei, normalmente cidades-estado, países e, no limite, impérios. Mais tarde começou a fazer sentido falar de civilizações com um fundo religioso (mesmo que na prática a ordem tenha sido inversa), a civilização cristã, islâmica e, teria muito sentido, civilização budista, que influenciou grande parte do extremo oriente.

Mais recentemente tenta-se encontrar no «ocidente» um conceito vais vasto de civilização. Se bem que em termos estritos o ocidente refere-se à parte do mundo influenciada pelo modelo cultural europeu, que inclui as heranças helenística, cristã e judaica, também se entende como o conjunto de países que se regem pela democracia liberal e, desta forma, países como o Japão e Coreia do Sul passarão também a constar.

Para o tipo de análise que aqui é feito opta-se por não utilizar nenhum dos limites anteriores. Está implícito um conceito de civilização europeia que se baseia, propositadamente, num aspecto a confirmar: o suicídio civilizacional. Separa-se a Europa do restante ocidente ao assumir a hipótese de que se tornou um continente que renunciou voluntariamente às suas origens, não só ao cristianismo mas a praticamente a toda cultura pretérita. É uma recusa provocada por algumas elites de indivíduos que não se sentem bem consigo mesmos, mas que têm uma enorme capacidade de influenciar, pela negativa, as massas. São estas elites que fazem, desde logo, passar a ideia que as massas são incultas e que não têm nada a ensinar mas devem, apenas, limitar-se a aprender e só aquilo que eles têm para ensinar. Estes intelectuais, depois de desvalorizarem o conhecimento disperso por toda a sociedade, criam uma base de trabalho para construir uma nova sociedade e, desta forma, tornam-se os principais obreiros do suicídio civilizacional. Trata-se de um movimento que se verifica nível global mas a Europa distingue-se por ser o local onde é menor a oposição a este «progressismo».

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segunda-feira, abril 30, 2007

Religião e civilização (1)

CULTURA

Em termos latos define-se cultura como toda a produção que deriva da inteligência humana, desde simples artefactos até sistemas morais e filosóficos, passando pela arte e pela ciência. A identidade cultural é algo que tem uma vertente estritamente pessoal, mas que só tem sentido se existir uma partilha de grupo. Em ambos os casos, dizem-nos os sociólogos, tal fruição só é possível devido à existência de símbolos que criam «redes de significância» e tornam a cultura reproduzível e reconhecível. De certa forma, os viajantes acreditam, mesmo que inconscientemente, na universalidade destes princípios. Por mais distante e exótica que seja a cultura com que se defrontam, confiam que a apreensão de alguns dos símbolos indígenas os faça ganhar novamente o pé. Mesmo antes de saber algo sobre o novo local, a simples observação vai confirmando, aos poucos, uma coerência e um conjunto de normas e valores que constituem o sustentáculo. Por isso, os viajantes esperam encontrar as instituições que servem de guardiães a essas normas e valores, por vezes de forma ingénua tentando traçar paralelos com os exemplos da sua aculturação original.

As culturas estimulam reacções contrárias em relação à mudança, pois tanto a estimulam como a repudiam. A mudança é inevitável quando o ambiente natural sofre alterações drásticas, mas tirando isso ocorrerá motivada pelas forças em acção no interior de uma sociedade ou pela interacção entre culturas. T.S. Eliot escreveu há quase 60 anos um livro (Notes Towards a Definition of Culture) que tenta esclarecer alguns destes pontos. Para Eliot, para uma cultura florescer, os homens nem deviam estar demasiado unidos nem demasiado separados. Por isso advogava que a manutenção de classes sociais era mais importante para a transmissão da cultura que as pretensões igualitaristas. Não defendia, contudo, a manutenção de classes sociais rígidas, castas imutáveis que, de certa forma, é a única concepção de classe social admitida pelos marxistas. Defendia até que, mais fundamental que o interesse de cada classe era a própria cultura da sociedade.

Os desequilíbrios aqui implícitos são importantes para geral um certo nível de fricção. A cultura de uma nação beneficiaria se fosse constituída por várias culturas que, partilhando um conjunto comum de valores, se estimulavam mutuamente. Apesar de defender a importância das elites, Eliot opunha-se a classificar cultura apenas como erudição e educação formal. O desenvolvimento cultural deveria ser sempre orgânico e natural, não sendo possível guiá-lo de forma consciente nem planeada. A utilidade de cada uma das produções culturais devia ser avaliada por cada um dos intervenientes e não apenas por uma autoridade central supostamente omnisciente

Mais difícil do que discernir e classificar a cultura presente é identificar a sua génese. Eliot acreditava que nenhuma cultura poderia aparecer e desenvolver-se sem estar relacionada com uma religião. Confessava que não conseguia perceber todas as implicações aqui envolvidas, mas não tinha dúvidas que a manutenção da cultura só era possível através da manutenção da religião e, por isso, considerava que o secularismo e cosmopolitismo estavam condenados.

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terça-feira, abril 24, 2007

Fragmentos do Japão

Os japoneses chamam-lhe Fuji-san, que quer dizer monte Fuji e não senhor Fuji. Ver o monte Fuji pela primeira vez ao vivo provoca sempre alguma surpresa. Com mais de 3700 metros e sem mais nenhuma montanha por perto que lhe faça frente, avista-se a várias dezenas de quilómetros dos mais diversos locais em dias limpos. Para alguns monte sagrado, foi também fonte inesgotável para artistas e, na sua base, local de treino para os temíveis samurais.

Monte Fuji ou Fuji-san, como dizem os japoneses.




As portas Torii encontram-se um pouco por toda a parte no Japão, tanto no meio das cidades como em locais isolados no campo. Marcam a entrada dos santuários xintoístas e, actualmente, são construídas não só em madeira mas também em metal e betão, podendo ainda ter várias cores, normalmente o vermelho mas também a cor do material de que é feito. O xintoísmo é uma religião largamente animista e das poucas coisas realmente indígenas no Japão. De certa forma é um mistério a forma como o xintoísmo interagiu e deixou ser-se influenciado pelo budismo, ao ponto de quase todos os japoneses serem praticantes de ambas as religiões.

Porta Torii do santuário xintoísta de Katori Jingû.



Santuário xintoísta de Katori Jingû.



O respeito pela Natureza advém naturalmente da prática xintoista, aqui demonstrado próximo da entrada do santuário de Kashima.




As bicicletas são um dos meios de transporte mais utilizados pelos japoneses, havendo parques de estacionamento só para elas. A área metropolitana de Tóquio é habitada por mais de 30 milhões de pessoas, que utilizam o comboio e o metro como principais meios de deslocação, complementados pelas bicicletas de custo reduzido para percursos mais curtos. Apesar de ser uma cidade com alta densidade urbana, Tóquio preserva no seu interior jardins imensos que cobrem uma parte significativa da zona central.



Parque para bicicletas num centro comercial em Kawasaki.



Harajuku, umas zonas de Tóquio mais frequentadas por jovens no fim de semana.



Ao lado da estação de Harajuku fica o jardim de Meiji, com 175 hectares.

Apenas durante algumas semanas do ano se podem ver as cerejeiras em flor. Em certos locais, como no castelo de Odawara, encontram-se idosos sentados desenhando estas paisagens, que eles não poderão ver muito mais vezes.

Entrada do recinto do castelo de Odawara.



Castelo de Odawara.



Mais uma vista de Odawara.



Cerejeiras em flor perto do santuário de Katori Jingû.



O Kyudô é considerada uma das artes mais puras do Japão. O arco longo, com mais de 2 m de comprimento e assimétrico, revela através do tiro todas as instabilidades físicas e mentais do arqueiro. No Japão é praticado em larga escala, sobretudo por universitários, apesar de não ter propriamente um limite máximo de idade, não sendo difícil de encontrar pessoas com mais de 90 anos que ainda atiram regularmente. O Kyudo foi dado a conhecer ao ocidente por Herrigel no seu livro “Zen e a Arte do Tiro com Arco” (pela Assírio & Alvim). Ao longo de décadas o livro foi lido por milhões de ocidentais, contudo o Kyudo foi uma arte que nunca se expandiu fortemente para fora do Japão, onde não chegarão a existir cerca de 3 mil praticantes na Europa e Estados Unidos. Talvez por isso alguns dos enganos do livro ainda permanecerão durante muito tempo.

Dôjô de Kyudô em Kamakura, orientado por Maky Kudo, Kyoshi.




Tiro de cerimónia, pelo mestre Nobuyuki Kamogawa, Hanshi 10º Dan. Cerimónia no Budokan de Tóquio em 13 de Abril de 2007. O silêncio era tal que se ouvia o sistema de ar condicionado a funcionar.




Princesa Takamadonomiya Hisako discursando no Taikai comemorativo da fundação da Fedaração Internacional de Kyudo, em 13 de Abril de 2007. A princesa é patrona desta arte e representa a ligação à casa imperial.




Demonstração de tiro de guerra - "Koshiya Kumi Yumi".

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terça-feira, abril 17, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (X)

O MAL

A maior parte das religiões têm duas vertentes. Uma exterior, voltada para as celebrações, que ajudou a estabelecer os ritmos das sociedades e ritualizou os momentos fundamentais (nascimento, iniciação, casamento e morte). Opto ainda por colocar na vertente exterior os actos que pedem a protecção divina. Depois, existe a parte interior da religiosidade, onde é necessário ir para além da mera crença e do cumprimento das regras. Aqui o indivíduo tem de aprende a «escutar-se a si mesmo» e a crença, a existir, já não é em algo facilmente catalogável, será num Deus que se define por aquilo que «não é» ou pela nossa natureza pura e original a que não temos acesso directo até nos realizarmos. Entra-se no reino dos mistérios e da entrega sem saber o que nos espera e, de preferência, sem nada esperar.

Tornou-se politicamente correcto dizer que a prática interior das religiões não é, na verdade, religião mas filosofia de vida. E para o comprovar há relatos de acontecimentos em que os mestres ousavam quebrar regras e, até mesmo, ter um comportamento anti-social. Enquanto a parte exterior da religião dedica-se à distinção simplista entre bem e mal, a parte interna está para além do bem e do mal. É evidente que isto torna-se apelativo para aqueles que, procurando uma dimensão mais profunda para as suas existências, não abdicam de uma liberdade irresponsável. Acham mesmo que a entrada nos níveis mais profundos da espiritualidade só é possível renegando a religiosidade exterior. Confundem, portanto, repúdio com transcendência.

Esta espiritualidade “Paulo Coelho” tem dois problemas. O primeiro, óbvio, é a selecção apenas dos trechos mais fáceis de compreender e de colocar em prática, ficando de forma os assuntos mais complexos e penosos de executar. Outro problema é a remoção do contexto, onde não se percebe que certas atitudes insólitas foram estratagemas pontuais para atingir determinados fins e não a regra. O contexto que se deve assumir é o da religiosidade exterior, este é o pressuposto. A parte mais profunda da religiosidade só é possível construir com base na religiosidade exterior. Esta base não necessita ser uma religiosidade explícita mas, pelo menos, um conjunto de valores essenciais, entre os quais o bem e o mal.

As referências ao mal causam aversão a muitas pessoas, e com alguma justificação. Parte da destruição da Igreja Católica ocorreu por dentro, pelos padres que durante gerações que não souberam fazer uma hierarquia dos vários níveis de mal e se dedicaram a vociferar contra a sexualidade e outros costumes, sem mostrarem qualquer compaixão. Ora, isto não só provocou fortes anti-corpos na sociedade como é uma adulteração do próprio cristianismo. O problema é que esta rejeição, compreensível, levou a rejeitar qualquer noção de mal, criando um terreno fértil para o relativismo absoluto.

O próprio «mal» tornou-se confuso, por vezes tomado como uma essência maléfica pronta a encarnar nas pessoas, que se adapta a produções cinematográficas. Ora, o «mal» mais não é que uma atitude que nos coloca fora de harmonia com o que nos rodeia e com nós mesmos. As religiões dão-nos pistas para isso mas, em última análise, é preciso recorrer à consciência pessoal porque é impossível saber até que ponto os sacerdotes estão ou não corrompidos. Mas renegar ao conceito de «mal» é negar a própria consciência pessoal.

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terça-feira, abril 03, 2007

Aviso

Para os eventuais leitores deste blog que estejam atentos à sua periodicidade semanal, comunico que é provável que nas próximas duas semanas não existam actualizações por motivos de visita ao país do sol nascente.

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quarta-feira, março 28, 2007

Indícios do suicídio civilizacional (IX)

O BEM

Em crianças ensinaram-nos o que era o bem e o mal. Evitar o mal era a nossa protecção e afastava-nos do perigo. Mais tarde, na adolescência, na universidade, na vida adulta surgiram as novas fontes que nos desmentem a validade dos primeiros ensinamentos. O bem e o mal não existem, são coisas inventadas para nos provocar terror e nos incutir um sentimento de culpa, que nos castra socialmente e na nossa intimidade de modo a manter o poder dos padres, que surgem como salvadores dos papões que eles mesmo inventaram.

Assim formou-se uma sociedade de indivíduos com visceral aversão ao religioso, ao tradicional e ao conservador. Quando se tornam pais já nada têm para ensinar aos seus filhos. Tentam compensar a rejeição dos ensinamentos pretéritos com a adesão às novidades salvadoras. Seguem de forma pueril todas as indicações dos especialistas para uma vida saudável, para um correcto desenvolvimento psico-cognitivo dos filhos, para poupar 5 euros por ano em electricidade seguindo uma disciplina férrea em relação aos interruptores (na gíria técnica diz-se que “não custa nada”).

Uma vivência assim é resultado do declínio espiritual porque os indivíduos perderam qualquer noção de bem e de mal. O que antes era “o bem” deu lugar a uma tentativa de aceitar friamente as conclusões racionais das disciplinas do conhecimento humano como orientador principal. Note-se que o problema não está em aceitar a racionalidade mas em não perceber as suas limitações.

Aquilo que se chamava “o bem” tratava-se em grande parte de um conjunto de hábitos, comportamentos, ideias e rituais que resultaram de um longo processo de triagem civilizacional, cuja validade não foi decretada por ninguém mas descoberta através de miríades de pessoas que foram escolhendo o que consideravam ser as melhores opções para os seus problemas, com muitas tentativas e erros. A codificação das «melhores práticas» em códigos éticos e morais nunca é um processo feito de uma só vez. Mesmo as propostas surgidas de uma revelação religiosa tiveram os seus antecedentes culturais e só sobreviveram porque foram aceites e não impostas.

É um erro monumental pensar que a civilização ocidental vivia na obscuridade da irracionalidade religiosa até a chegada do iluminismo. Foi esse mesmo iluminismo que deu um impulso monumental a disparates como a astrologia. A religião não impediu a criação literária, arquitectónica, musical e até, pasme-se, o nascimento da ciência. Fazem passar constantemente a imagem oposta que nos custa a crer que é assim. Lembram-nos constantemente dos passos em falso da Igreja e esquecem quando foram os padres a impulsionar o saber e as artes. Passamos a acreditar que a religião e a tradição nada tinham de bom a oferecer e, sendo assim, “o bem” teria de vir de outras paragens.

Mas o que acontece se tivermos que substituir todo o legado religioso e tradicional? O antigo “bem” pode traduzir-se numa palavra: «confiança». Essa confiança resulta de uma conjunto mínimo de soluções para os aspectos fundamentais da vida, a que o homem tem acesso. Pode implicar esforço e sacrifícios, mas o exemplo de incontáveis homens que já seguiram os mesmos passos e triunfaram inspira confiança e, até mesmo, um certo sentido de transcendência.
Hoje em dia as queixas mais frequentes são sobre o stress e o mundo que muda cada vez mais rápido. O curioso é que a maior parte das pessoas que apresentam estas queixas tem uma noção muito reduzida das mudanças que o mundo sofre e vivem quase sempre num contexto de reduzida incerteza, ao ponto de se meterem em encargos que irão durar décadas. O que estas pessoas se queixam na realidade não é do que se altera mas do que deixou de ser permanente. Não é a pressão que os assusta mas o não terem armas para lidar com ela. É a sensação de serem sempre apanhados desprevenidos, dos seus problemas serem demasiados específicos e ainda não terem solução. Não só perderam a confiança em si mesmos como já nem sabem que é possível voltar a obtê-la, pelo que nem se apercebem que lhes falta confiança.

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